29 setembro 2008

Efêmera verdade

[O sábio catalão] Aturdido por duas saudades colocadas de frente uma para a outra como dois espelhos, perdeu o seu maravilhoso sentido de irrealidade até que terminou por recomendar a todos que fossem embora de Macondo, que esquecessem tudo o que ele ensinara do mundo e do coração humano, que cagassem para Horácio e que em qualquer lugar em que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera.
Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

27 setembro 2008

Descuido

De repente, quase brincando, como uma travessura a mais, Amaranta Úrsula descuidou da defesa e, quando tentou reagir, assustada do que ela mesma tinha feito possível, já era tarde demais. Uma comoção descomunal imobilizou-a no seu centro de gravidade, plantou-a no lugar, e a sua vontade defensiva foi demolida pela ansiedade irresistível de descobrir o que eram os apitos alaranjados e os balões invisíveis que a esperavam do outro lado da morte. Mal teve tempo de esticar a mão e procurar às cegas a toalha e meter uma mordaça entre os dentes, para que não saíssem os gemidos de gata que já estavam rasgando as suas entranhas.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

26 setembro 2008

Viajar


Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.

Amyr Klink

25 setembro 2008

Paciência infinita

Mais tarde, quando obteve nos bordéis uma informação mais profunda sobre a natureza dos homens, pensou que a mansidão de Gastón tinha origem na paixão desatinada. Mas quando o conheceu melhor e se deu conta de que o seu verdadeiro temperamento entrava em contradição com a sua conduta submissa, imaginou a maliciosa suspeita de que até a espera do aeroplano era uma farsa. Então, pensou que Gastón não era tão bobo quanto parecia, mas pelo contrário, era um homem de uma firmeza, uma habilidade e uma paciência infinitas, que se propusera a vencer a esposa pelo cansaço da eterna complacência, do nunca lhe dizer não, do simular um assentimento sem limites, deixando-a se enredar em sua própria teia de aranha, até o dia em que não pudesse mais suportar o tédio das ilusões ao alcance da mão e ela mesma fizesse as malas para voltar à Europa. A antiga piedade de Aureliano se transformou numa aversão violenta. Pareceu-lhe tão perverso o sistema de Gastón, mas ao mesmo tempo tão eficaz, que se atreveu a prevenir Amaranta Úrsula. Entretanto, ela zombou da sua desconfiança, sem vislumbrar sequer a desagregadora carga de amor, de incerteza e de ciúmes que trazia dentro de si.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

22 setembro 2008

Baratas

(...) [Sua vida] continuava sendo igual na tarde em que foi à livraria do sábio catalão e se encontrou com quatro rapazes desbocados, encarniçados numa discussão sobre os métodos de matar baratas na Idade Média. O velho livreiro, conhecendo a estima de Aureliano por livros que só Beda, o Venerável, tinha lido, insistiu com uma certa malignidade paternal para que ele fosse o árbitro da controvérsia e este nem sequer tomou fôlego para explicar que as baratas, o inseto voador mais antigo sobre a terra, já era a vítima favorita das chineladas do Antigo Testamento, mas que como espécie era definitivamente refratária a qualquer método de extermínio, desde as rodelas de tomate com bórax até a farinha com açúcar, pois as suas mil seiscentas e três variedades tinham resistido à mais remota, tenaz e desapiedada perseguição que o homem jamais empreendera, desde as suas origens, contra qualquer ser vivente, inclusive o próprio homem, ao extremo de que assim como se atribuía ao gênero humano um instinto de reprodução, devia-se atribuir a ele também outro, mais definido e premente, que era o instinto de matar baratas, e que se estas tinham conseguido escapar à ferocidade humana era porque tinham se refugiado nas trevas, onde se fizeram invulneráveis pelo medo congênito do homem à escuridão, mas em compensação tornaram-se susceptíveis ao brilho do meio-dia, de modo que na Idade Média, na atualidade e pelos séculos dos séculos, o único método eficaz para matar baratas era o deslumbramento solar.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

21 setembro 2008

Janela da Alma


Começo do filme Janela da Alma

"A publicidade oferece aos nossos desejos um universo subliminar que insinua que a juventude, a saúde, a virilidade, bem como a feminilidade, dependem daquilo que compramos. Um mundo todo sorrisos em que diálogos amáveis e muito blábláblá subentendem estas mensagens dissimuladas. "
Oliveiro Toscani – A Publicidade é um Cadáver que nos Sorri

20 setembro 2008

Agonizando de amor

Embora fosse pelo menos quinze anos mais velho que sua mulher, os seus gostos juvenis, a sua vigilante determinação de fazê-la feliz e as suas virtudes de bom amante compensavam a diferença. Na realidade, quem visse aquele quarentão de hábitos cautelosos, com o seu cordão de seda no pescoço e a sua bicicleta de circo, não poderia pensar que tinha com a sua jovem esposa um pacto de amor desenfreado e que ambos cediam às urgências recíprocas no lugares menos adequados e onde os surpreendesse a inspiração, como o fizeram desde que começaram a se encontrar, com uma paixão que o correr do tempo e as circunstâncias cada vez mais insólitas iam aprofundando e enriquecendo. Gastón era não só um amante feroz, de uma sabedoria e uma imaginação inesgotáveis, como também talvez fosse o primeiro homem na história da espécie que tinha feito uma aterragem de emergência e por pouco não se matara com a namorada só para fazer amor num campo de violetas.

(...) esperava o seu riso de cascalho, os seus uivos de gata feliz e as suas canções de gratidão, agonizando de amor a qualquer hora e nos lugares menos pensados da casa. Uma noite, a dez metros da sua cama, na mesa de ourivesaria, os esposos de ventre alucinado arrebentaram o vidro da prateleira e acabaram se amando num charco de ácido muriático. (...) ansiedade que lhe provocavam as risadas, os cochichos, as brincadeiras preliminares e, em seguida, as explosões de felicidade agônica que enchiam as noites da casa.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

18 setembro 2008

Saudade

Sentiu-se tão velha, tão acabada, tão distante das melhores horas da sua vida que [Fernanda] desejou inclusive as que recordava como piores, e só então descobriu quanta falta faziam as brisas de orégano na varanda e o vapor das roseiras ao entardecer e até a natureza animalesca dos que chegavam. Seu coração de cinza socada, que resistira sem quebrantos aos mais duros golpes da realidade cotidiana, desmoronou-se aos primeiros embates da saudade. A necessidade de se sentir triste ia se transformando num vício à medida que os anos a devastavam. Humanizou-se na solidão.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

17 setembro 2008

Filhos do Universo

Nosso medo mais profundo não é o de sermos inadequados. Nosso medo mais profundo é que somos poderosos além de qualquer medida. É a nossa luz, não as nossas trevas, o que mais nos apavora. Nós nos perguntamos: Quem sou eu para ser Brilhante, Maravilhoso, Talentoso e Fabuloso? Na realidade, quem é você para não ser? Você é filho do Universo. Se fazer pequeno não ajuda o mundo. Não há iluminação em se encolher, para que os outros não se sintam inseguros quando estão perto de você. Nascemos para manifestar a glória do Universo que está dentro de nós. Não está apenas em um de nós: está em todos nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente, damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. E conforme nos libertamos do nosso medo, nossa presença, automaticamente, libera os outros.
Nelson Mandela

16 setembro 2008

Na cama e na mesa

Liberados dos espelhos repetidores que tinham vendido para comprar animais de rifa e dos damascos e veludos concupiscentes que a mula comera, [Aureliano Segundo e Petra Cortes] ficavam acordados até muito tarde com a inocência de dois avós insones, aproveitando para fazer cálculos e contar centavos o tempo que antes esbanjavam em se esbanjarem a si próprios.
(…)
Petra Cotes, por outro lado, amava-o mais à medida que sentia aumentar o seu carinho, e foi assim que na plenitude do outono voltou a acreditar na superstição juvenil de que a pobreza era uma servidão de amor. Ambos evocavam agora como um estorvo as farras desatinadas, a riqueza aparatosa e a fornicação sem freios, e se lamentavam de quanta vida lhes custara encontrar o paraíso da solidão partilhada. Loucamente apaixonados ao fim de tantos anos de cumplicidade estéril, gozavam o milagre de se amarem tanto na mesa como na cama, e chegaram a ser tão felizes que quando já eram dois anciãos esgotados continuavam brincando como coelhinhos e brigando como cachorros.
Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

15 setembro 2008

Abençoada vida

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. "
Clarice Lispector

14 setembro 2008

Advogados

Os decrépitos advogados vestidos de negro, que em outros tempos tinham assediado o Coronel Aureliano Buendía e que agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica. Quando os trabalhadores redigiram uma lista de pedidos unânime, muito tempo se passou sem que pudessem notificar oficialmente a companhia bananeira. Imediatamente após ter conhecido a resolução, o Sr. Brown enganchou no trem o seu suntuoso vagão de vidro e desapareceu de Macondo junto com os representantes mais conhecidos da sua empresa. Entretanto, vários operários encontraram um deles no sábado seguinte num bordel e o fizeram assinar uma cópia do ofício de reivindicações quando estava nu com a mulher que se prestou a levá-lo para a armadilha. Os enlutados advogados demonstraram em juízo que aquele homem não tinha nada que ver com a companhia e, para que ninguém pusesse em dúvida os seus argumentos, fizeram-no prender como vigarista. Mais tarde, o Sr. Brown foi surpreendido viajando incógnito num vagão de terceira classe e lhe fizeram assinar outra cópia da lista de reivindicações. No dia seguinte, compareceu diante dos juízes com o cabelo pintado de preto e falando um castelhano fluente. Os advogados demonstraram que não era o Sr. Jack Brown, superintendente da companhia bananeira e nascido em Prattville, Alabama, mas um inofensivo vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de Dagoberto Fonseca. Pouco depois, diante de uma nova tentativa dos trabalhadores, os advogados exibiram em lugares públicos o atestado de óbito do Sr. Brown, autenticado por cônsules e chanceleres, e no qual se dava fé de que no último nove de junho ele tinha sido atropelado em Chicago por um carro de bombeiros. Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com as suas queixas aos tribunais supremos. Foi lá que os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam de toda validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os recrutava ocasionalmente e em caráter temporário. De modo que se dissolveu a patranha do presunto de Virgínia, das pílulas milagrosas e dos reservados natalinos, e se estabeleceu por sentença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores.

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

12 setembro 2008

Urubus

Sonhou que entrava numa casa vazia, de paredes brancas, e que se inquietava com a angústia de ser o primeiro ser humano que entrava nela. No sonho recordou que havia sonhado o mesmo na noite anterior e em muitas noites dos últimos anos, e soube que a imagem se apagaria de sua memória ao acordar, porque aquele sonho teimoso tinha a virtude de não ser recordado a não ser dentro do mesmo sonho. Um momento depois, com efeito, quando o barbeiro bateu na porta da oficina, o Coronel Aureliano Buendía acordou com a impressão de que involuntariamente tinha adormecido por breves segundos e que não tinha tido tempo de sonhar nada.
— Hoje não — disse ao barbeiro. — Volte na sexta-feira. Tinha uma barba de três dias, salpicada de pelos brancos, mas achava melhor não se barbear, pois na sexta-feira ia cortar o cabelo e podia fazer tudo ao mesmo tempo. O suor pegajoso da sesta indesejável reviveu nas suas axilas as cicatrizes dos furúnculos. Havia estiado, mas ainda não saíra o sol. O Coronel Aureliano Buendía emitiu um arroto sonoro que devolveu ao paladar a acidez da sopa e que foi como uma ordem do organismo para que jogasse a manta nos ombros e fosse ao reservado. Ali permaneceu mais do que o tempo necessário, agachado sobre a densa fermentação que subia do caixote de madeira, até que o costume lhe indicou que era hora de reiniciar o trabalho. Durante o tempo que durou a espera voltou a se lembrar de que era terça-feira e de que José Arcadio Segundo não tinha estado na oficina porque era dia de pagamento nas fazendas da companhia bananeira. Essa lembrança, como todas as dos últimos anos, passou sem que viesse ao caso pensar na guerra. Lembrou-se de que o Coronel Gerineldo Márquez lhe havia prometido, certa vez, conseguir um cavalo com uma estrela branca na testa e que nunca se voltara a falar disso. Em seguida, derivou para episódios dispersos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não poder pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar a frio, para que as lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sentimento. De volta à oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento para tomar um banho, mas Amaranta se havia antecipado a ele. De modo que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuvinha de três dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si, percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os instrumentos longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crianças, e pela primeira vez desde a juventude pisou conscientemente numa armadilha da saudade e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que o seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu para a porta.
— É o circo — gritou. Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de ouro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não ficou senão o luminoso espaço na rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curiosos próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando no circo, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o fato de estarem baixando os urubus.
Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

Cuidado!

11 setembro 2008

O tempo escapa pelas mãos

"'Os anos de agora já não vêm como os de antigamente', costumava dizer [Ursula], sentindo que a realidade cotidiana lhe escapava das mãos. Antigamente, pensava, as crianças demoravam muito para crescer. Bastava recordar todo o tempo que fora necessário para que José Arcadio, o mais velho, partisse com os ciganos e tudo o que acontecera até que ele voltasse pintado como uma cobra e falando como um astrônomo, e as coisas que tinham acontecido em casa até que Amaranta e Arcadio esquecessem a língua dos índios e aprendessem o castelhano. Que se visse o sol e o sereno que suportara o pobre José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro, e o quanto tivera que chorar a sua morte antes que lhe trouxessem moribundo um Coronel Aureliano Buendía que, depois de tanta guerra e depois de tanto se sofrer por ele, ainda não tinha feito cinqüenta anos. Em outra época, depois de passar o dia inteiro fazendo animaizinhos de caramelo, ainda lhe sobrava tempo para se ocupar das crianças, para ver-lhes no branco dos olhos que estavam precisando de uma poção de óleo de rícino. Agora, pelo contrário, quando já não tinha nada que fazer e andava com José Arcadio pregado às saias de manhã à noite, a qualidade ruim do tempo obrigava-a a deixar as coisas pela metade."

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

10 setembro 2008

Índio

''Morrer se preciso for; matar, nunca'' - esse era o lema de Cândido Mariano Rondon e dos pioneiros do Serviço de Proteção ao Índio, antes da degeneração da agência numa ponta-de-lança da espoliação dos índios. Rondon personificou o espírito de um tempo moldado pelo projeto de consolidação da unidade nacional. As suas idéias e ações adquirem significado sobre um pano de fundo formado por eventos como a Guerra do Paraguai, a incorporação do Acre, a delimitação final das fronteiras amazônicas e a elaboração dos planos ferroviários de integração nacional. Na visão rondoniana, a proteção estatal dos índios representava uma etapa na trajetória que conduziria até a sua integração à nação única. Quando se discute o impasse sobre a reserva Raposa Serra do Sol, o que está em jogo é o legado de Rondon.

Os indigenistas da tradição inaugurada por Rondon não indagavam se os índios seriam integrados à sociedade nacional, mas apenas como esse processo ocorreria - e dedicaram sua vida à tentativa de evitar que se integrassem como peões semi-escravizados nas fazendas ou miseráveis relegados às fímbrias da economia urbana. Nenhum deles imaginava que, no outono do século 20, emergisse, triunfante, uma doutrina empenhada na produção política de um país multinacional. Mas é disso que se trata quando se discute Roraima.

No debate sobre as terras indígenas de Roraima se contrapuseram as propostas de delimitação fragmentária e contínua das reservas. A primeira, inscrita no projeto da nação única, admitia a interação de índios e não-índios que habitam a região e tinha como horizonte a idéia de integração. A segunda, que acabou por se impor, deriva da lógica multiculturalista da separação e tem como horizonte a criação de nações indígenas autônomas nas faixas limítrofes do Estado brasileiro. Hoje, ela demanda a expulsão dos não-índios estabelecidos na região e desenha os contornos da primeira guerra étnica no Brasil do século 21.
Por vias inesperadas, transversas, os índios se incorporam a uma ''sociedade mundial'' antes de se integrarem à sociedade nacional. As notícias que chegam de Roraima dão conta da divisão dos indígenas em ''índios católicos'', defensores da expulsão, e ''índios evangélicos'', defensores da permanência dos colonos. No cipoal de organizações globalizadas e missões religiosas que atuam em Roraima, existem entidades e figuras abnegadas que contribuíram para amenizar a tragédia sanitária a que, em razão da ausência do Estado, se encontravam entregues os índios ianomâmis nos anos 80 e 90. Mas, sobretudo, se destacam os arautos da criação de nações indígenas separadas, que enxergam os índios como objetos da engenharia internacional das etnias e como pretextos na conquista de fontes de financiamento para as ONGs multiculturalistas.

Quando se discute a questão indígena, o tema verdadeiro é a viabilidade do conceito de nação. Roraima não começa nem acaba em Roraima. Na Bolívia de Evo Morales o governo escreveu uma Constituição multiculturalista que nega a existência legítima da nação e demarca uma estrada jurídica para a emergência de diversas ''nações ancestrais''. Como fruto desse passo, os mineiros do estanho se preparam para abdicar de sua dupla identidade histórica de bolivianos e trabalhadores, substituindo-a pela identidade ''original'' de indígenas. Os líderes da operação identitária já reivindicam a transferência da propriedade dos recursos do subsolo às novas nações ''ancestrais'', o que lhes permitiria vender as minas a empresas de mineração. O saque das riquezas nacionais está na dobra da esquina da renúncia à nação.

A proposta de um ''arquipélago'' de terras indígenas exprimia uma concepção sobre a fronteira entre os índios e a sociedade nacional. Aquele traço de limite deveria ser relativamente poroso, de modo a propiciar um intercâmbio vigiado pelo Estado. A delimitação contínua do ''continente'' indígena, por seu turno, pretendeu implantar um território circundado por sólidas muralhas. Do lado de fora ficariam os não-índios e o Estado; do lado de dentro, os índios, as ONGs e os missionários. Esse tipo de fronteira só poderá ser traçado pelo recurso à violência.

Há ''nações indígenas'' distintas da nação brasileira? A pergunta carece de sentido, pois nações não existem na natureza, como rios e montanhas, mas são inventadas na esfera da política. Os índios ''originais'' não podem ser restaurados, mas sempre é possível inventar, debaixo dos escombros da idéia da nação única, ''nações indígenas'' pós-modernas, financiadas por instituições multilaterais e lideradas por coalizões de ativistas bem conectados e índios globalizados.

Há, no Brasil, uma ''nação africana na diáspora'', constituída pelos ''afrodescendentes''? Eis outra pergunta que não tem resposta objetiva, pois, nas palavras de Ernest Renan, ''a nação é um plebiscito cotidiano''. Um projeto multiculturalista em curso almeja fabricar essa nação, por meio de leis raciais, da revisão radical de nossa História e do cancelamento do imaginário nacional da mestiçagem. Nações indígenas autônomas poderiam existir ao lado do Brasil. Já a ''nação afrodescendente'' só pode nascer pela substituição da nação brasileira por uma coleção de nações étnicas fundadas sobre a glorificação de supostas ancestralidades de sangue. Brasil, nessa hipótese, seria apenas um espaço geográfico confederal e um tênue pacto de convivência entre povos ciosos de suas diferenças.

Rondon, o marechal mestiço com ancestrais bororos e terenas, morreu há 50 anos. Homem de seu tempo, nacionalista e positivista, ele trocou o paradigma da catequese dos índios ''por um vago e eventual culto cívico à bandeira'' (George Zarur, A Utopia Brasileira, Abaré/Flacso, 2003). Os índios não precisam desse culto, mas precisam menos ainda das bandeiras inventadas pelos novos fundamentalistas da etnicidade.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

06 setembro 2008

Saudade


"Ela era uma velhinha que morava sozinha, em uma grande casa. Não tinha amigos porque, ao longo dos anos, ela os vira morrer, um a um. Seu coração era um poço de saudade e de perdas. Por isso, ela decidira que nunca mais se ligaria afetivamente a ninguém. E, para se lembrar que um dia tivera amigos, passara a chamar as coisas pelos nomes dos amigos que haviam morrido. Sua cama se chamava Belinha. Era grande, sólida e confortável. Mesmo depois que ela se fosse, Belinha continuaria a existir. A poltrona confortável da sala de visitas se chamava Frida. Haveria de durar muitos anos mais. A casa se chamava glória. Tinha sido construída há mais de cem anos, mas não aparentava mais que vinte. Era feita de madeira muito forte, vigorosa. E o carro, grande, espaçoso se chamava Beto. “Haveria de servir”, pensava a velhinha, “para alguém, depois de sua morte”. E assim vivia a velhinha solitária.

Certo dia, quando estava lavando a lama de Beto, um cachorrinho chegou no portão O portão não tinha nome, porque ela achava que ele logo teria que ser substituído. Suas dobradiças estavam enferrujadas e a madeira apodrecida. O animalzinho parecia estar com fome e ela tirou um pedaço de presunto da geladeira e o deu ao cão, mandando-o embora. Porém, no dia seguinte, ele voltou. E no outro e no outro. Todos os dias, ele vinha, abanava o rabo e ela o alimentava, mandando-o embora. Ela dizia que Belinha não comportava um adulto e um cachorro, que Frida não gostava que cães sentassem nela e glória não tolerava pêlo de cachorro. E Beto? Bom, esse fazia os cachorros passarem mal. Um ano depois, o animal estava grande, bonito. E tudo continuava do mesmo jeito.

Até que um dia ele não apareceu. Ela ficou sentada na escada, esperando. No dia seguinte, também. Nada. Resolveu telefonar para o canil da cidade e perguntar se eles tinham visto um cachorro marrom. Descobriu que eles tinham dezenas de cachorros marrons. Quando perguntaram se ele estava usando coleira com o nome, ela se deu conta que nunca dera um nome para ele. Sentou-se e ficou pensando no cachorro marrom que não tinha coleira com um nome. Onde quer que estivesse, ninguém saberia que ele tinha de vir todos os dias até seu portão para que ela lhe desse de comer.

Tomou uma decisão. Dirigiu Beto até o canil e falou para o encarregado que queria procurar o seu cachorro. Quando ele lhe perguntou o nome do cachorro, ela se lembrou dos nomes de todos os amigos queridos aos quais havia sobrevivido. Viu seus rostos sorridentes, lembrou-se de seus nomes e pensou em como fora abençoada por ter conhecido esses amigos. “Sou uma velha sortuda”, pensou. “O nome do meu cachorro é Sortudo”, disse. E gritou, ao ver os cães no grande quintal: “aqui, Sortudo”! Ao som da sua voz, o cachorro marrom veio correndo. Daquele dia em diante, Sortudo morou com a velhinha. Beto parece que gostou de transportar o cachorro. Frida não se incomodou que ele sentasse nela. Glória não ligou para os pelos do cachorro. E todas as noites Belinha faz questão de se esticar bem para que nela possam se acomodar um cachorro marrom Sortudo…e a velhinha que lhe deu o nome."

04 setembro 2008

E a TV?

"O alcaide, por insistência do Sr. Bruno Crespi, explicou num decreto que o cinema era uma máquina de ilusão que não merecia os arroubos passionais do público. Diante da desalentadora explicação, muitos acharam que tinham sido vítimas de um novo e aparatoso negócio de cigano, de modo que optaram por não voltar ao cinema, considerando que já tinham o suficiente com os seus próprios sofrimentos para chorar por infelicidades fingidas de seres imaginários."
Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

02 setembro 2008

Cicatriz

"Levaremos lembranças, coisas que sempre serão inesquecíveis para nós, coisas que nos marcarão, que mexerão com a nossa existência. Marcas. Umas serão mais profundas, outras superficiais, porém todas com algum significado. Serão detalhes que guardaremos dentro de nós e que quanto contados para outros talvez não tenham a menor importância, pois só nós saberemos o quanto foi incrível vivê-los. Poderá ser uma música, quem sabe um livro, talvez uma poesia, uma carta, um e-mail, uma viagem, uma voz, um encontro casual, ou um cumprimento afetuoso. Poderá ser um raiar de sol, um buquê de flores, um cartão de Natal, um abraço gostoso, um perfume, um gesto, uma palavra amiga num momento precioso. Pode vir a ser aquele incômodo sentimento de ter sido abandonado, ou uma decepção, uma mágoa, uma perda, ou uma ferida que abrimos no peito de alguém. Quem sabe uma linda amizade incomparável, um sonho que foi alcançado após muita espera e muita luta, ou outro que deixou de existir por puro fracasso. Pode ser simplesmente um instante, um olhar, um sorriso, um aroma, um conselho, um amparo, um beijo, um afago.

Para o resto de nossas vidas levaremos pessoas guardadas dentro de nós. Umas porque nos dedicaram carinho, outras porque foram objetos do nosso amor, ou outras por terem nos magoado profundamente. Quem sabe também haverá algumas que deixarão marcas mágicas por terem sido tão rápidas em nossas vidas e, mesmo assim, terem conseguido plantar dentro de nós muita coisa boa. Lá na frente é que poderemos realmente saber a qualidade de vida que tivemos, a quantidade de belas marcas que conseguimos carregar e a qualidade das marcas que deixamos nos outros. Bem lá na frente é que poderemos avaliar do que exatamente foi feita a nossa vida, se de amores ou de rancores, se de alegrias ou de tristezas, se de vitórias ou de derrotas, se de ilusões ou de realidades. Pense sempre que hoje é só o começo de tudo. Que se houver algo errado ainda está em tempo de ser mudado e que o resto de nossas vidas, de certa forma, ainda está em nossas mãos."

01 setembro 2008

Consciência da nossa inconclusão


"Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez homens e mulheres educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade."

Paulo Freire