10 junho 2008

Viver de poesia

Caminhava pelo Centro com uma amiga, na volta de um almoço em que pedira salada de folhas verdes com molho de gengibre e tomara um suco de abacaxi com hortelã, dentro de sua atual dieta de baixíssima caloria. Sua amiga, uma socióloga mineira, trabalhara com comunidades periféricas; a tarde começava tranqüila para eles, apesar do tumulto do trânsito. Desciam a Rua XV, a caminho da Reitoria da Universidade Federal.
Ele então viu a mulher sentada numa marquise, com trouxas, roupas, cadernos, uma máquina de escrever no chão, e um cartaz manuscrito: vendo livrinhos de poesia. Ela trabalhava na Olivetti portátil, parecida com a que S. outrora usara. Nada a atrapalhava, nem as pessoas passando na calçada nem os meninos de rua que erguiam tampas de aço do passeio para amoitar seus apetrechos.
S. sentiu seu coração disparar. No início de sua vida de leitor e de autor, saíra em busca de escritores, curioso para conhecê-los, idealizando neles qualidades que nunca se revelaram. Aos poucos, perdera todo o fascínio por grandes escritores e hoje até os evitava. Em encontros literários, ficava sempre à margem, tentando se esquivar. Não saía mais à caça dos animais sagrados. Ali mesmo, numa via-sacra literária, perseguira nosso contista maior, estudara cada um de seus movimentos, isso 20 anos atrás.
De repente, S. se dava conta de que tudo tinha acontecido 20 anos atrás. Mal chegava de algum lugar e duas décadas se interpunham entre a viagem e ele. Era isso a maturidade: um distanciamento súbito das coisas no tempo.
Já vira esta poeta de rua outras vezes. No começo, pensara que fosse uma andarilha, mas sempre a encontrava no mesmo ponto, onde antes houvera uma livraria e agora era uma região de portas fechadas. Muito mais de 20 anos atrás, quando chegara a Curitiba, S. fora morar num velho edifício da Rua XV com a Mariano Torres. Aquela era uma área repleta de significados biográficos. No mercado do outro lado da rua, comprava os produtos para sua culinária de estudante. E tudo havia sido alterado por um mágico chamado tempo. Mas algo permanecera imutável: aquela máquina de escrever que cuspia páginas cheias de versos. A máquina e a poesia pertenciam a uma idade superada.
Ele próprio já publicara coletâneas poéticas, mas estava tentando se livrar desta condição. Queria-se apenas romancista, um tipo de escritor ainda aceito em tempos de internacionalização. E ele agora se via naquela mulher acampada na marquise.
S. travou o passo. A amiga o olhou compreensiva e fez o mesmo, mas ficou a certa distância. Ele olhou os livros em exposição. Traziam desenhos de lápis de cor na capa e o nome manuscrito da autora, em letra de professora primária: Izabel Cristina Milano. Pareciam o trabalho de uma menina de sexta série. Ele nem olhou as folhas datilografadas e as capas infantis – comprou todos.
Enquanto pagava, a autora contou que nascera na rua, fora criada em instituições de caridade, estudara até a oitava série, o que não era muito, mas para ela era tudo:
– Enquanto outras crianças de rua partiram por caminhos que todos conhecem, eu me dediquei à poesia.
Ele se sentiu mal. Quantas vezes não dissera que vivia para a literatura e não da literatura? E estava ali alguém do povo que vivia da literatura, vendendo seus voluminhos mal datilografados, com ilustrações convencionais e encadernação tosca. E cada exemplar era um livro diferente, produzido na improvisada editora de rua. Como comprara todo o estoque, Izabel teria de trabalhar o resto da tarde para recompor sua vitrine. Produzia sob demanda, e não sentia a pressão do encalhe. Tudo isso passou pela cabeça de S.
Ela pegou da mão dele um dos livros e mostrou um poema.
– É sobre a minha vida. Nasci na Praça Osório, bem no chafariz, durante o inverno; minha mãe morreu logo em seguida. Tem dias que tenho saudade de uma pessoa que nem conheci.
Então percebeu que, mais do que ele, Izabel sabia da força das palavras. S. passou o resto do dia com os livrinhos na bolsa e, em casa, à noite, leu o poema sobre a vida da poeta nascida e criada nas ruas de Curitiba, um poema forte, apesar de convencional, com um uso estranho das vírgulas no fim de cada verso. O poema, intitulado “Saudade de minha mãe”, começa assim:
Quando eu nasci,/ Com muito amor,/ Vim nascer no chafariz,/ Para a minha mãe sentir a dor,/ Cresci na rua,/ Brinquei na praça, /Admirei a lua, /Sem pagar nada, de graça, /Pois, quando eu vim ao mundo,/ A bacia estava com água, /Frio era o tempo que fazia, /E a água estava gelada...
Guardaria aqueles livrinhos entre os volumes de sua biblioteca com estantes novas? Ele não sabia o que fazer, talvez os esquecesse no meio da papelada que toma de assalto suas gavetas. Independente do destino deles, o episódio o ensinava que para viver de poesia é preciso não esperar quase nada.
Miguel Sanches Neto, na Gazeta do Povo, em 10/06/2008

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