27 junho 2009

Ao supérfluo

Os índios fascinam a gente porque são anteriores ao tempo.

Ao que parece, eram nômades natos.
Banhistas contumazes. Mulherengos.

Como todos os povos que atingiram um alto nível de civilização, os índios eram irrevogavelmente distraídos.

Não costumavam trabalhar. Já que não lhes apetecia comprar nem vender, qualquer trabalho resultava-lhes supérfluo.

E os índios desprezavam o supérfluo, ao contrário de nós próprios que, fabricando diariamente milhares de objetos, acabamos por desembocar na guerra, máquina de matar homens e de... Incinerar objetos.
Antônio Callado / Murilo Mendes / Noel Nutels

25 junho 2009

Atual?

Estamos perdidos há muito tempo. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média se abate progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Por toda a parte se diz: o país está perdido!... Algum opositor do atual governo?... Não!
Eça de Queirós, em 1871.

18 junho 2009

Tantas

Tantas, sou só uma e sou tantas
Sou devassa e sou santa
Recatada e vulgar

Louca, tão centrada e tão louca
Degustando em tua boca
As delícias de amar

Me respeita e me abusa
Me ame como quiser
Simples demais ou confusa

Sou simplesmente mulher
Silvia Machete

16 junho 2009

Hipótese

      "E se Deus é canhoto
      e criou com a mão esquerda?
      Isso explica, talvez, as coisas deste mundo. "
      Carlos Drummond de Andrade


12 junho 2009

Aos namorados do Brasil

Dai-me, Senhor, assistência técnica
para eu falar aos namorados do Brasil.
Será que namorado algum escuta alguém?
Adianta falar a namorados?
E será que tenho coisas a dizer-lhes
que eles não saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem ,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e só vêem, só escutam
melodia e paisagem de sua própria fabricação?

Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados,
enquanto namorados. Antes, depois
são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltará à sublime invalidez
que é signo de perfeição interior.
Namorado é o ser fora do tempo,
fora de obrigação e CPF,
ISS, IFP, PASEP,INPS.

Os códigos, desarmados, retrocedem
de sua porta, as multas envergonham-se
de alvejá-lo, as guerras, os tratados
internacionais encolhem o rabo
diante dele, em volta dele. O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde essa batalha.

Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.
De ser o seu cadáver itinerante.
De não ser. De estar, e nem estar.

O problema, Senhor, é como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.
E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,
por obra e graça de sua namorada.

A mulher antes e depois da Bíblia
é pois enciclopédia natural
ciência infusa, inconsciente, infensa a testes,
fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.
Há que aprender com as mulheres
as finezas finíssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante,
às vezes morre três vezes ignorante de seu coração
e da maneira de usá-lo.

Só a mulher (como explicar?)
entende certas coisas que não são para entender. r
São para aspira como essência, ou nem assim.
Elas aspiram o segredo do mundo.

Há homens que se cansam depressa de namorar,
outros que são mentirosos com a namorada.
Pobre de quem não aprendeu direito,
ai de quem nunca estará maduro para aprender,
triste de quem não merecia, não merece namorar.

Pois namorar não é só juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmúrios, silêncios,
caminhadas, jantares, gravações,
fins-de-semana, o carro à toda ou a 80,
lancha, piscina, dia-dos-namorados,
foto colorida, filme adoidado,
rápido motel onde os espelhos
não guardam beijo e alma de ninguém.

Namorar é o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
não intencional, nunca previsto,
e dá ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.

Namorar é além do beijo e da sintaxe,
não depende de estado ou condição.
Ser duplicado, ser complexo,
que em si mesmo se mira e se desdobra,
o namorado, a namorada
não são aquelas mesmas criaturas
que cruzamos na rua.
São outras, são estrelas remotíssimas,
fora de qualquer sistema ou situação.
A limitação terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.
Carlos Drummond de Andrade

08 junho 2009

A arte de não adoecer

Se não quiser adoecer - "Fale de seus sentimentos"

Emoções e sentimentos que são escondidos, reprimidos, acabam em doenças como: gastrite, úlcera, dores lombares, dor na coluna. Com o tempo a repressão dos sentimentos degenera até em câncer. Então vamos desabafar, confidenciar, partilhar nossa intimidade, nossos segredos, nossos pecados. O diálogo, a fala, a palavra, é um poderoso remédio e excelente terapia.

Se não quiser adoecer - "Tome decisão"

A pessoa indecisa permanece na dúvida, na ansiedade, na angústia. A indecisão acumula problemas, preocupações, agressões. A história humana é feita de decisões. Para decidir é preciso saber renunciar, saber perder vantagem e valores para ganhar outros. As pessoas indecisas são vítimas de doenças nervosas, gástricas e problemas de pele.

Se não quiser adoecer - "Busque soluções"

Pessoas negativas não enxergam soluções e aumentam os problemas. Preferem a lamentação, a murmuração, o pessimismo. Melhor é acender o fósforo que lamentar a escuridão. Pequena é a abelha, mas produz o que de mais doce existe. Somos o que pensamos. O pensamento negativo gera energia negativa que se transforma em doença.

Se não quiser adoecer - "Não viva de aparências"

Quem esconde a realidade finge, faz pose, quer sempre dar a impressão que está bem, quer mostrar-se perfeito, bonzinho etc., está acumulando toneladas de peso... uma estátua de bronze, mas com pés de barro. Nada pior para a saúde que viver de aparências e fachadas. São pessoas com muito verniz e pouca raiz. Seu destino é a farmácia, o hospital, a dor.

Se não quiser adoecer - "Aceite-se"

A rejeição de si próprio, a ausência de auto-estima, faz com que sejamos algozes de nós mesmos. Ser eu mesmo é o núcleo de uma vida saudável. Os que não se aceitam são invejosos, ciumentos, imitadores, competitivos, destruidores. Aceitar-se, aceitar ser aceito, aceitar as críticas, é sabedoria, bom senso e terapia.

Se não quiser adoecer - "Confie"

Quem não confia, não se comunica, não se abre, não se relaciona, não cria liames profundos, não sabe fazer amizades verdadeiras. Sem confiança, não há relacionamento. A desconfiança é falta de fé em si, nos outros e em Deus.

Se não quiser adoecer - "Não viva sempre triste"

O bom humor, a risada, o lazer, a alegria, recuperam a saúde e trazem vida longa. A pessoa alegre tem o dom de alegrar o ambiente em que vive. "O bom humor nos salva das mãos do doutor". Alegria é saúde e terapia.

Dr. Dráuzio Varella

07 junho 2009

O Poeta e a Lua


Em meio a um cristal de ecos
O poeta vai pela rua

Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria

O poeta, aloucado e branco

Palpa as nádegas da lua.

Entre as esferas nitentes
Tremeluzem pelos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água
Palpita a ferida crua

O poeta todo se lava
De palidez e doçura

ardente e desesperada
A lua vira em decúbito
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua
O poeta afaga-lhe os braços
E o ventre que se menstrua
A lua se curva em arco

Num delírio de volúpia.

O gozo aumenta de súbito
Em frêmitos que perduram
A lua vira o outro quarto

E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens
Nos ventos do mar perpassa
Um salso cheiro de lua.

E a lua, no êxtase, cresce
Se dilata e alteia e estua

O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E míngua e se pazígua...

O poeta desaparece
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece

No seu claustro de ciúmes.
Vinicius de Moraes

04 junho 2009

Devo existir?

Devo tomar
qualquer coisa ou
suicidar-me?
Não: vou existir.
Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir...
Fernando Pessoa

03 junho 2009

Comer, Amar e Morrer



CALANDRINO: Tessa, meu bem querer, chegue um pouquinho pra cá!

TESSA: Cê deixe de me atentar. O homem tá lá pra morrer!

CALANDRINO: E eu tô doido pra viver!

TESSA: Não, Calandrino, qué o que?

CALANDRINO: Tessa, minha querida, esse é o natural da vida: comer, amar e morrer



TESSA: Que falta de sorte! Mas para tudo existe um jeito. Já dei nó em pingo d'água, enfiei beijo em cordão. Já sequei o mar com a mão, já fiz o sul virar norte. Só não dei jeito pra morte. Mas não desisti 'inda não.




TOFANO: O que foi? Quer sentar? Eu conduzo assim tão mal?

ISABEL: O noivo dança com a noiva, é o natural.

TOFANO: Natural é a natureza, com essa não se discute.

TOFANO: Contra o sol, o vento, o amor, não é luta que se lute. Eu nunca nada implorei, a amigo ou inimigo, e palavra não diria que lembrasse coisa doce, se a sua beleza não fosse essa agonia e aflição, que obriga meu coração, para não morrer de míngua, a fazer da minha língua o arauto dessa paixão.





TESSA: Pro careca tem peruca, pro pecado, confissão. Pro corno existe a ilusão. Pro pobre, o dia de sorte. Só não vi jeito pra morte, mas não desisti 'inda não.



TESSA: Ninguém aqui traiu ninguém. Foi tudo só invenção.

FILIPINHO: Mentira, você quer dizer?

TESSA: Mas foi com boa intenção.

ISABEL: E vocês não têm piedade? Vocês não têm compaixão?

CALANDRINO: Pior se fosse verdade.

FILIPINHO: Que horror! Mas com que objetivo?

ISABEL: Pra que tamanha maldade?

TESSA: Pra esquentar vosso amor.

CALANDRINO: Deixar o fogo mais vivo!

ISABEL: Assim? Fazendo sofrer?

TESSA: A gente só dá o valor se tem medo de perder.

FILIPINHO: Pensei que ia morrer.

ISABEL E eu botei pra chorar.

CALANDRINO: Agora vocês se perdoam sem ter o que perdoar.



TOFANO: Que a beleza maior fique no escuro, configura crime contra a natureza, pois o belo, visto, e lembrado no futuro, provoca no homem o amor mais duro, revisitado, gera mais beleza.

MONNA: Engano seu. O amor nasce das sombras. Do que se imagina entre o escuro e a luz. Se queres o meu corpo e aos meus pés tu tombas, é só porque não podes ver quem te seduz.

(...)

TOFANO : Te amo... Te quero... És tudo... Por favor, quero te ver...

MONNA: Desejarás ter ficado mudo, no momento exato em que me conhecer.

TOFANO: Socorro!

MONNA: Vai...

TOFANO: Aaaaiii... Aaaiii...

TOFANO: Você? Como? Mas de que jeito?

MONNA: Eu mesma, Monna, prazer. Sua esposa de direito, agora também de fato.

TOFANO: Como foi que entrou no quarto?

MONNA: Pela porta, e por que não? Meu marido, minha casa, minha cama, meu colchão... Quem esperava chegar?

TOFANO: Esperava... Esperava... Esperava não lhe amar. Esperava morrer triste, sem nunca o amor achar. Da vida esperava pouco, queria nem esperar... Tudo mudou no momento em que eu descobri lhe amar.

MONNA: Mesmo? Que coisa boa... Parece uma outra pessoa...

TOFANO: Sou mesmo! Outro, por completo! A morte não foi em vão: a vontade de meu pai finalmente vem à tona. Casei com a senhora Monna, lhe dei um chão e um teto. Agora: filhos e netos!

MONNA: Que bom... Vindo de um marido... Isso hoje em dia é tão raro...

TOFANO: Seu amor me dá sentido, só agora vejo claro.

FILIPINHO: Paixão não é planta de roça, só cresce no natural.

ISABEL: Tantas voltas para encontrar o que tinha no quintal.

MASETTO: Que a paz, a concórdia e a alegria, brotem nos três casamentos.

CALANDRINO: São bons ventos...

MONNA: Quem diria...

TESSA: Diria que o amor é arte de ficar quando se parte e ver inteiro o que é parte. Que primeiro não é quinto, que parte do ovo é pinto e o pinto é parte do galo. Falo somente o que sinto, se falo é o mesmo que pinto e, se eu não sinto, me calo.

CALANDRINO: Do vinho restou um quinto, para nós sobrou um quarto, depois de rezar um terço, vai cada um pro seu berço, que nessa noite eu me farto! Eu muito falo e não minto, só digo o que é verdadeiro: a metade do que sinto já faz um amor inteiro.

MASETTO: Metade de zero é nada. Espero a mulher amada, que já de mim nada espera. Se o amor é uma quimera, melhor é ganhar a estrada, que o dobro de zero é nada e nada é o dobro de zero. Já não tendo o que mais quero, vale tratar de viver de forma mais reduzida: comer, amar e morrer, é bom resumo da vida.


01 junho 2009

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa - Quando Fui Outro, p. 29