30 agosto 2008

Nascimento

"O carnaval tinha alcançado o seu mais alto nível de loucura, Aureliano Segundo tinha satisfeito por fim o seu sonho de se fantasiar de tigre e andava feliz entre a multidão exaltada, rouco de tanto rugir, quando apareceu vindo pelo caminho do pantanal um bloco enorme trazendo num andor dourado a mulher mais fascinante que se podia imaginar. Por um momento, os pacíficos habitantes de Macondo tiraram as máscaras para ver melhor a deslumbrante criatura com coroa de esmeraldas e capa de arminho, que parecia investida de uma autoridade legítima e não simplesmente de uma soberania de lantejoulas e papel crepom. (...)
Chamava-se Fernanda del Carpio. Haviam-na selecionado como a mais bela entre as cinco mil mulheres mais belas do país e a trouxeram para Macondo com a promessa de proclamá-la rainha de Madagáscar. Úrsula cuidou dela como se fosse uma filha. (...)
Com a temeridade atroz com que José Arcadio Buendía atravessara a serra para fundar Macondo, com o orgulho cego com que o Coronel Aureliano Buendía promovera as suas guerras inúteis, com a tenacidade insensata com que Úrsula assegurara a sobrevivência da estirpe, assim Aureliano Segundo procurou Fernanda, sem um só instante de desalento. Quando perguntou onde se vendiam coroas de defunto, levaram-no de casa em casa para que escolhesse as melhores. Quando perguntou onde estava a mulher mais bela que já surgira sobre a terra, todas as mães lhe levaram as suas filhas. Perdeu-se nos desfiladeiros da névoa, por tempos reservados ao esquecimento, nos labirintos da desilusão. Atravessou um ermo amarelo onde o eco repetia os pensamentos e a ansiedade provocava miragens premonitórias. Ao fim de semanas estéreis, chegou a uma cidade desconhecida onde todos os sinos tocavam a finados. Embora nunca os tivesse visto, nem ninguém os tivesse descrito, reconheceu imediatamente os muros carcomidos pelo sal dos ossos, as decrépitas varandas de madeiras destripadas pelos fungos, e pregado no portão e quase apagado pela chuva o cartãozinho mais triste do mundo: VENDEM-SE COROAS FÚNEBRES.
Desse momento até a manhã gelada em que Fernanda abandonou a casa aos cuidados da Madre Superiora, mal houve tempo para que as freiras cosessem o enxoval e colocassem em seis baús os candelabros, a baixela de prata e o peniquinho de ouro e os incontáveis e inúteis destroços de uma catástrofe familiar que tardara dois séculos para se consumar. D. Fernando recusou o convite para acompanhá-los. Prometeu ir mais tarde, quando acabasse de liquidar os seus compromissos, e a partir do momento em que deu a bênção à filha voltou a se trancar no escritório, a escrever os bilhetes com as vinhetas de luto e o escudo de armas da família que haveriam de ser o primeiro contato humano que Fernanda e seu pai tiveram em toda a vida. Para ela, esta foi a data real do seu nascimento. Para Aureliano Segundo foi quase ao mesmo tempo o princípio e o fim da felicidade."
Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

28 agosto 2008

Bom ou Mau

"Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado."

Camões – O Desconcerto do Mundo

26 agosto 2008

A Bela

"Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, contrariando as ordens de Úrsula, causava um pânico de exasperação entre os forasteiros. Era evidente demais que estava inteiramente nua sob a bata grosseira e ninguém podia entender que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaro com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chupava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um hálito perturbador, uma brisa de tormento que continuava sendo perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qualquer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde estivera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa podia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam imediatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desespero. Inconsciente da aura inquietante em que se ria do insuportável estado de íntima calamidade que provocava à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem a menor malícia e acabava de transtorná-los com as suas inocentes complacências. Quando Úrsula conseguiu impor a ordem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que os forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porque afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Realmente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em horas fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. Às vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, dormia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários trocados, até que algum incidente casual voltava a pô-la em ordem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às onze da manhã e se trancava durante duas horas completamente nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantava o denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mesma tirando-a da caixa com uma cuia. Era um ato tão prolongado, tão meticuloso, tão rico de situações cerimoniais, quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entregue a uma merecida adoração do seu próprio corpo."

Gabriel Garcia Márquez - Cien Años de Soledad

21 agosto 2008

Dor

"A dor é parte do processo da vida. Nas sociedades ocidentais, ao tratar de evitar a dor constantemente, evita-se também a alegria, a possibilidade de prazer, a capacidade de gozo. Se temos tanto medo à dor, estamos também negando a possibilidade do outro lado da dor que é a capacidade de gozar."
Alejandro Gonzáles Iñárritu

19 agosto 2008

Será que esse curso é bacana?

(Link)


E esse então?
1. O ser humano é livre em suas determinações?
2. Está tudo escrito no código genético?
3. O homem é fruto do momento histórico?
4. O inconsciente é um tirano?
.
.
Mas o melhor é esse aqui
Iniciação à Física Quântica – Um Universo de Possibilidades
(...)
Como os novos conceitos das ciências modernas dificilmente são apresentados de maneira acessível para leigos, ficando sempre restritos a um grupo reduzido de especialistas ou mestres em áreas científicas, o curso visa facilitar seu entendimento, demonstrando que a Física Quântica já está presente no dia a dia da vida moderna, principalmente com seus paralelos conceituais que modificam, radicalmente, nossa maneira de ver e interagir com o mundo.
O assunto é tão fascinante que basta um mero conhecimento superficial sobre Física Quântica para gerar uma grande mudança na forma de se viver em comunhão com os demais seres humanos, com os animais e com a Natureza de modo geral.
(...)

18 agosto 2008

O piá que fazia pipas

Um conto desses, com produção curitibana, não é todo dia que se encontra.
Posso ter ficado emocionado com as referências a Dalton, ou, talvez, em lembrar de locais familiares onde há tempos não passo; quem sabe foi pela história triste e realista, ou somente pelas citações ao Atlético... Realmente não sei.
Só sei que me impressionou. Que me tocou. Que me fez refletir. I
sso é arte! Isso é cultura! É mais disso que nos falta. E é por isso que lhes ofereço...

"As histórias estão na vida. Eu só me encarrego de ver, ouvir, trocar os nomes e fazer crer que tudo não passa de ficção. Aos que perguntam se o que escrevo é mentira, costumo responder: “É mentira, é tudo mentira!”. Dói menos e eu ainda ganho fama de ficcionista, coisa bastante interessante pra um sujeito que brinca de escrever.

Curitiba são muitas. Uma delas é a do Vampiro. A Curitiba do Vampiro não é a mais assustadora, tampouco é a mais cruel. Curitiba são muitas. Uma delas é a da propaganda institucional que, independente do partido, mostra uma cidade bonita e humana. A Curitiba oficial não é a mais bonita, a Curitiba oficial não é a mais humana.

Curitiba são muitas e numa delas nasceu Paulo Roberto – o Paulinho – apelido que caía bem a um guri de corpo tão franzino. Paulinho, o primogênito, era irmão de Francisco, três anos mais moço, ambos filhos de dona Estela, cujo marido havia morrido numa briga de bar, defendendo a honra de uma prostituta que lhe fazia o papel de amante e de fornecedora de cocaína. Estela, Paulinho, Chico, o pai morto a tiros, a amante prostituta e Deus: agora você está apresentado a uma legítima família curitibana. Curitiba são muitas.

A Curitiba onde nasceu Paulinho era repartida em Vilas, hoje fundidas em setenta e cinco bairros cuidadosamente desenhados nos mapas do Instituto Municipal de Planejamento e Urbanismo. Olhando o mapa tudo parece tão perto, mas na vida real as distâncias costumam saltar aos olhos. As distâncias físicas machucam o corpo; as distâncias sociais machucam a alma. Pobre em Curitiba é machucado por dentro e por fora. Dona Estela, Paulinho e Chico eram pobres. Traziam consigo, no corpo e na alma, incontáveis cicatrizes. Algumas desapareceram; outras, não.

Dona Estela era balconista de uma padaria no centro histórico de Curitiba. Emprego modesto, muitas horas de trabalho atrás do balcão. Chegava e saía sempre cansada, nunca teve ânimo – ou curiosidade - para erguer os olhos e ler a orgulhosa inscrição que atestava “Tradição e qualidade desde 1913”. O gerente da padaria era um sujeito rude, homem de poucas palavras e que se limitava a ser gentil com os clientes, e só com os clientes.

Os melhores pães e broas, as melhores tortas e bolachas e os frios mais frescos e saborosos, tudo isso, passava pelas mãos de Dona Estela que antes de sentir desejo de provar essas delícias, sentia tristeza por não poder levá-las para casa e saciar o apetite dos filhos. Uma senhora havia sido demitida por ter furtado meio quilo de presunto. Ela não se atreveria a perder o emprego, embora a tentação fosse grande de levar consigo boa partida de queijo, de presunto e de pão.

O máximo que conseguia era levar, duas ou três vezes por semana, as broas úmidas que haviam ficado ressecadas e que por isso já não podiam ser vendidas pela padaria, sob pena de serem colocadas em xeque a tradição e a qualidade conquistadas desde 1913. Quando sobravam broas ressecadas, Dona Estela pedia ao gerente autorização para levá-las para casa e ouvia como resposta: “Pode levar, pois broa seca assim nem porco come!”. Ela sorria, sem jeito, para disfarçar o choro e ia embrulhar as broas que serviriam de jantar para os filhos.

Dona Estela embrulhava as broas em quatro ou cinco voltas de um papel fininho, depois amarrava tudo com barbante e levava para casa o pacote, caminhando pelas ruas de pedra, de olhos baixos, para disfarçar as lágrimas que ameaçavam lhe escorrer pela face. A Curitiba do Vampiro não é a mais assustadora, tampouco é a mais cruel. Do outro lado da cidade, numa vila perdida, Paulinho esperava a chegada da mãe.

Havia três grandes motivos para a espera: ver a mãe chegar em segurança, comer a broa que ela trazia e aproveitar o papel e o barbante do embrulho para fazer pipa. Mal a mãe apontava no começo da rua e Paulinho já vinha ao seu encontro: “Mãe, tava preocupado! Que saudade, mãe!” – e logo atrás vinha o Chico para repetir a cena e encher de alegria o coração materno.

“A mãe trouxe aquela broa sequinha que vocês gostam. Aquela que fica mais gostosa quando a gente molha no café!”. E o anúncio materno botava na cara da piazada um sorriso que só a alegria consegue criar. “Então vamos rápido, mãe, pois ainda precisa ferver água pra fazer o café!” – ordenava Paulinho, trazendo Dona Estela pela mão como se assim ela pudesse andar mais ligeiro.

Depois do café com broa, Paulinho pegava o papel do embrulho, alisava, cortava as partes amassadas e esticava o barbante, sempre sob o olhar atento e curioso do irmão Francisco. Paulinho fazia pipas e vendia pela vizinhança, ganhando o dinheirinho que, segundo ele, seria usado para comprar uma camisa oficial do Atlético, seu time de coração. Francisco olhava tudo curioso, como se diante dele existisse não apenas um irmão, mas um gênio!

Naquela noite, após o café com broa, Paulinho se preparou para fazer mais uma pipa. Mais uma, não. Desta vez, ele faria uma pipa para ele, e não uma pipa para vender aos vizinhos. Paulinho pegara o papel, o barbante, umas varetas que lhe foram presenteadas pelo dono da venda, seu Almir, e tintas guache que lhe foram dadas pela Professora Débora, a moça que ensinava Artes na escola da vila. Paulinho estava pronto para fazer a sua pipa, com as cores do Atlético, uma vez que o vermelho e o preto já estavam garantidos nos potinhos trazidos da escola.

Quando Paulinho ia começar os trabalhos, ouviu o pedido do irmão: “Me ensina?”. Surpreso, Paulinho perguntou: “Por que você quer aprender a fazer pipas?”. Obteve resposta nada esclarecedora: “Porque sim, ué!”. E como pouco adiantava levar adiante aquele diálogo, permitiu que o irmão pudesse ter a preciosa lição e, na condição de Mestre, Paulinho se sentiu importante, sentiu-se rico.

Pensou: “Pobre é quem não tem o que dividir e nem tem o que ensinar. Eu tenho papéis, barbantes, cola, varetas e tintas para dividir com meu irmão. Eu sei fazer pipas e posso ensinar o meu irmão e, quem sabe, ele pode me ajudar a fazer pipas e a ganhar dinheiro pra comprar minha camisa oficial do Atlético!”. Pobreza é não ter o que dividir, é não ter o que ensinar. Naquela casa não havia espaço para a pobreza. Paulinho estava pronto para fazer a pipa e para ensinar seus segredos ao irmão Chico. Segredos a gente só conta para um irmão!

E a aula foi iniciada. Cola daqui e dali, tesoura, barbante, varetas. “Entorta um pouco mais, Chico!”, “Se passar muita cola a pipa fica pesada e não sobre direito!”, “Ô piá burro! Já disse que é pra botar menos cola!”, “Aí, Chico, é desse jeito mesmo!”, “Pega a tinta que agora só falta pintar de vermelho e preto, Chico!”.

Dada a ordem, Chico foi até o quarto e trouxe as tintas: potinho verde e potinho branco, para espanto de Paulinho. “Tá de sacanagem comigo, Chico? Pega os potes certos: tinta vermelha e tinta preta, das cores do Atlético!”. Chico, olhando o irmão nos olhos, revelou:

- Eu quero minha pipa verde e branca, pois eu gosto do Coxa! (Segredos a gente só conta para um irmão!).

Paulinho, atônito, tentou demover o irmão da idéia de pintar a pipa de verde e branco, mas não teve jeito. Chico protestou:

- Eu quero minha pipa verde e branca. Você já fez pipa pra todo mundo, menos pra mim, Paulinho! O que é que te custa?

Paulinho fez as contas em silêncio e contabilizou seu prejuízo: ficaria sem sua pipa do Atlético, ficaria sem a pipa para vender no dia seguinte, teria de esperar um novo embrulho de broas para obter material para outras pipas e, por fim, houve por bem atender ao pedido do irmão. “Pobre é quem não tem o que dividir e não tem o que ensinar” – pensou Paulinho enquanto ajudava o irmão a pincelar as cores do inimigo na pipa que era para ser vermelha e preta.

Daquela noite em diante, Paulinho e Chico fizeram juntos dezenas de pipas, vendidas por toda a vizinhança. Paulinho nunca conseguir fazer a sua pipa Rubro-Negra, tampouco as pipas lhe renderam dinheiro suficiente para comprar a sonhada camisa oficial do Atlético. Dona Estela morreu logo depois de Paulinho completar dezoito anos; Chico ainda nem tinha quinze. Os irmãos tiveram de se separar. Paulinho foi servir o exército juntando-se ao 5º Esquadrão de Cavalaria Mecanizada; Chico foi morar com parentes em Paranaguá. Nunca mais iriam se encontrar.

Paulinho se casou, formou-se Advogado e tem um bom emprego na Justiça Federal. Tem casa, carros e dois filhos atleticanos: Estela, hoje com 17 anos; e Francisco, prestes a completar 14. Dia desses, foram os três, vestidos com a Camisa do Atlético, assistir jogo na Arena. Caminhavam ligeiro pela Getúlio Vargas, com seus cartões de sócio em punho, prontos para entrar na Baixada.

De repente, Paulinho parou diante de um varal onde estavam penduradas as bonitas camisas Rubro-Negras e as pipas do Atlético. Apesar dos protestos dos filhos - Pai, tá em cima da hora! Vamos! -, Paulinho perguntou o preço da pipa, comprou e a colocou debaixo do braço como se fosse um pacote de broas, como se fosse um pedaço da infância, como se fosse um sonho.

E entrou chorando na Arena da Baixada, como se ainda fosse um piá ou como se fosse o homem mais rico do mundo. As histórias estão na vida. Eu só me encarrego de ver, ouvir, trocar os nomes e fazer crer que tudo não passa de ficção."
Rafael Lemos

17 agosto 2008

Lucidez

Pelo voto livre, convicto e forte
"Antes que o leitor se canse de ouvir falar em eleições por causa da campanha que está começando, faço uma confissão: acho tão difícil votar! Que dureza é escolher um candidato! Quanto mais seriamente você encarar o voto, mais pesada sentirá a responsabilidade. A gente não quer votar em qualquer um só para cumprir a lei. Quer votar para fazer um movimento na direção de uma sociedade mais justa, mais correta, mais equilibrada. Mas como escolher a pessoa certa quando as opções não parecem boas ou não sabemos o suficiente para escolher um vereador, por exemplo? Em Curitiba, há mais de 800 candidatos e eu só conheço pessoalmente um rapaz que mendigava em uma esquina do Batel e agora – para meu espanto – apresentou-se como candidato.
Em geral, é mais difícil escolher quem está mais perto de nós, os vereadores. Especialmente porque os que já têm mandato raramente se destacam por sua atuação – eleitos, os vereadores desaparecem em um universo de assistencialismo para os carentes e de propostas inúteis. Quem é que está discutindo o futuro da cidade, questionando o prefeito, levantando temas que os cidadãos devem analisar? Parece que há um vácuo de idéias e de comprometimento – o voto obrigatório entrega a todos os cidadãos a responsabilidade de preencher esse vazio. Faz sentido. Mas é complicado.
Em 1989, na primeira eleição para presidente da República depois do fim da ditadura militar, cobri como jornalista os comícios dos principais candidatos no Paraná. Alguns vieram várias vezes (Collor, Brizola, Ronaldo Caiado, Afif Domingues). Faziam-se grandes comícios em que o candidato discursava durante até uma hora, caso de Brizola, ou apenas 5 minutos cuidadosamente cronometrados por assessores – era assim com o Collor. Os candidatos tinham de dar várias entrevistas aos radialistas das pequenas cidades por onde passavam, falar com dezenas de vereadores e líderes comunitários. Alguns mostravam uma paciência de Jó – caso de Paulo Maluf, sempre espirituoso; do comunista Roberto Freire e do paranaense Affonso Camargo. Collor e Aureliano Chaves estavam constantemente irritados; Ulysses Guimarães, cansado. Foi vendo tudo isso que percebi que não podia votar em Fernando Collor de Mello, que parecia tenso, pronto para a briga, cercado de uma parafernália de marketing que não deixava ninguém se aproximar dele. Também foi assim que confirmei minha intenção de votar em Mário Covas. Votei convicta mesmo sabendo que meu candidato não iria para o segundo turno. Votar assim é uma delícia.
De certa forma, foi porque escolher o candidato é tarefa árdua que tornaram o voto obrigatório no Brasil. Isso aconteceu em 1932, quando apenas 10% dos brasileiros tinham título de eleitor (o analfabetismo excluía a maioria). Temia-se que uma pequena participação dentro de um eleitorado já tão reduzido tirasse a legitimidade do processo. O número de eleitores cresceu, a preocupação persistiu: se o voto fosse voluntário, a participação não cairia muito? A experiência de outros países mostra que sim. Mas também mostra o outro lado da moeda. Há mais votos nulos e brancos em países com voto obrigatório do que naqueles em que é votar é uma opção do cidadão. Também há maior quantidade de votos ao acaso, em que os cidadãos escolhem qualquer candidato sem mais considerações que a de cumprir a obrigação (são dados recolhidos pela ONG International IDEA).
Ou seja, o voto facultativo é mais forte, mais consciente, mais saudável. Quem fizer o esforço de acompanhar a vida pública do país, de ir atrás de informação sobre os candidatos, vai ter motivos para ir até a urna. Quem não se sentir seguro para fazer a escolha, vai deixar o título na gaveta. Não parece mais sensato?"
Marleth Silva – Gazeta do Povo, em 16/08/2008.

16 agosto 2008

50 anos de Madonna


Express yourself, don't repress yourself

And I'm not sorry

It's human nature

And I'm not sorry

I'm not your bitch don't hang your shit on me [it's human nature]

You wouldn't let me say the words I longed to say

You didn't want to see life through my eyes

[Express yourself, don't repress yourself]

You tried to shove me back inside your narrow room

And silence me with bitterness and lies

[Express yourself, don't repress yourself]

Did I say something wrong?

Oops, I didn't know I couldn't talk about sex

[I musta been crazy]

Did I stay too long?

Oops, I didn't know I couldn't speak my mind

[What was I thinking]

You punished me for telling you my fantasies

I'm breakin' all the rules I didn't make

[Express yourself, don't repress yourself]

You took my words and made a trap for silly fools

You held me down and tried to make me break

[Express yourself, don't repress yourself]

Did I say something true?

Oops, I didn't know you couldn't talk about sex

[I musta been crazy]

Did I have a point of view?

oops, I didn't know I couldn't talk about you

[What was I thinking]

Did I say something true?

Oops, I didn't know you couldn't talk about sex

[I musta been crazy]

Did I have a point of view?

oops, I didn't know I couldn't talk about you
[What was I thinking]

[Im not apologizing]

[would it sound better if I were a man? ]

[you're the one with the problem]

[why don't you just deal with it]

[would you like me better if I was? ]

[we all feel the same way]

[I have no regrets. just look in the mirror]

[I don't have to justify anything]

[I’m just like you]

[why should I be? deal with it]

I´m absolute no regrets"


Tradução aqui

14 agosto 2008

Para entender

"Um amigo meu carioca, de passagem por Lisboa - vamos chamá-lo Guilherme, embora este seja o seu nome verdadeiro - arranjou uma namorada portuguesa. Depois de um revigorante bacalhau com grelos numa tasca sobre o Tejo foi para o berço com a cachopa. No melhor da festa, quando as apaixonadas piruetas encaminharam para o inexorável e delirante clímax, a garota começou a exclamar: "Ai, que me vem! Ai, que me vem!" O Guilherme apanhou um susto. Achou que a moça estava a ter um troço. Na verdade, estava. Estava tendo um lindo orgasmo à melhor maneira alfacinha.

Quando Guilherme voltou ao Rio e me contou a história fiquei pensando sobre como, mesmo quando se trata de sexo, que é uma das poucas actividades humanas em que todos falam mais ou menos a mesma língua, por vezes é necessário um intérprete. "Ai, que me vem! Ai, que me vem!", com seu sabor tão 1890, à Eça ou Camilo, significa o nosso "Estou Gozando! Estou Gozando!", só que muito mais delicado e poético. As brasileiras bem que podiam adoptá-lo.

Outro conhecido meu, que andou pela Indonésia em negócios certamente escusos, foi surpreendido quando, numa situação idêntica, a moça se pôs a gritar "Aku Keluar! Aku keluar!". O fulano quase caiu da cama, temendo estar infringindo algum tabu local. Mas não, a moça estava apenas verbalizando o prazer daquele honesto papai-mamãe lhe provocava.

Bem, para me precaver de possíveis mal-entendidos se e quando a situação se apresentar, procurei saber como as mulheres de diferentes culturas dizem "Estou Gozando! Estou Gozando!" - não ao pé da letra, claro, mas seu equivalente, ou seja, as palavras incontroláveis que vêm do âmago do prazer no momento do orgasmo. Para isso, consultei minhas amigas brasileiras e estrangeiras versadas em línguas, a própria e a dos outros. Limitei a pesquisa às mulheres porque não confio nos homens e também porque me parece que elas prestam mais atenção nessas coisas. Uivos, bufados e ruídos imorais, tipo "Uuuuuuu!", "Grmmmmmmphkkkk!" ou "Brjjjwwkkk!", comuns a todas as culturas, foram descartados assim como as interjeições medíocres como "Yeah! Yeah!", "Oui! Oui!" e "Ja wohl! Ja wohl!" que americanas, francesas e alemãs sem imaginação disparam repetitivamente quando estão gozando. Concentrei-me nas declarações mais articuladas de mulheres que levam o seu orgasmo a sério e descobri que, em alguns casos, a maneira pela qual este ou aquele povo declara "Estou Gozando! Estou Gozando!" ajusta a entender o respectivo temperamento nacional.

Evidentemente que para as línguas mais manjadas não precisei consultar ninguém. A americana diz "I'm coming! I'm coming!". A Francesa "Je viens! Je viens!". A alemã "Ich kamme! Ich kamme!". Tudo isso significa, literalmente, "Estou vindo! Estou vindo!" ou "Estou chegando! Estou chegando!". A sueca emite uma ligeira variante: "Det gar! Det gar!" - algo assim como "Está vindo! Está vindo!" ou "Está chegando! Está chegando!". Como se vê a ideia de que um orgasmo é um fluido em movimento que está a caminho e não demora é universal. Mas há povos que conseguem exprimi-lo de maneira mais enfática. A espanhola, por exemplo, grita "Estoy corriendo! Estoy corriendo!" - o que pode levar um brasileiro incauto a pensar que a moça vai empurrá-lo para fora de cama e sair como uma bala em direcção à porta e justamente quando ele achava que estava abafando.

Já a Japonesa é tão reservada que só deixa para falar depois. Quando você pensa que ela vai chegar ou está vindo uma voz suspira no seu ouvido: "Itchatta yo", que significa um singelo "Acabei de ir". E só diz isso uma vez sem ponto de exclamação. Pode ser meio frustrante para o parceiro mas, se ela declara que já foi é porque está tudo bem - e você que trate de ir também antes que ela resolva voltar.
Em Hebraico é a mesma coisa com a diferença de que a mulher diz "Ani gomeret" - significando um simples e declarativo "Terminei" só faltando assinar e reconhecer a assinatura. Compare isso com o carnaval feito por uma italiana que, ao sentir que vai gozar, proclama triunfante "Arriva!!! Arriva!!! Arriva!!!" em triplicata e o homem tem a sensação de que, sozinho, vale por um batalhão do Garibaldi, todo embandeirado.

Diante disso começo a achar óptimo o nosso "Estou Gozando! Estou Gozando!". É alegre, amoroso e ligeiramente sacana. Mesmo porque gozar tem vários outros sentidos no Brasil e cada qual mais agradável: rir, fazer graça, sentir prazer, desfrutar de uma coisa boa, viver satisfeito. Serve também para você se arriscar a levar uma boa gozada da mulher se não a fizer gozar."
Ruy Castro

13 agosto 2008

Desgraça

"A revolta do homem, olhando a vida tal qual é, imperiosamente se eleva, estrebucha e impõe seus feitos destruidores, ante a sordidez desse capitalismo atrofiador, desse mercantilismo desbocado e rapace, ante a arrogância dos néscios, a vanglória dos imbecis, o maquiavelismo insultante dos audaciosos, o triunfo do parasitismo, a insensatez dos nefastos políticos, a hipocrisia dos vendilhões de consciências enfatuados de moralistas, o impudor das que se poluem e prostituem, neste caos assombroso em que deambulamos e nos debatemos e ao qual a fatalidade histórica nos manieta, arrastando-nos na sua larga cauda de destruição, de miséria, de perdição e de desgraça."

Orlando Marçal

11 agosto 2008

Onde colocou?

"Só a leve esperança, em toda a vida,

Disfarça a pena de viver, mais nada;

Nem é mais a existência, resumida,

Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada

Sonho que a traz ansiosa e embevecida,

É uma hora feliz, sempre adiada

E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,

Árvore milagrosa que sonhamos

Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos

Porque está sempre apenas onde a pomos

E nunca a pomos onde nós estamos."

Vicente Augusto de Carvalho - Velho Tema

10 agosto 2008

Livre-se desta indiferença estúpida, sonolenta e preguiçosa!

"Tais obras, quaisquer que sejam seus funcionamentos, causas e consequências, tem infinito mérito, e dão grande crédito aos talentos desse homem mui engenhoso e útil, que terá o mérito de, onde quer que vá, fazer com que os homens pensem... Livre-se desta indiferença estúpida, sonolenta e preguiçosa, desta negligência indolente, que prende os homens aos mesmos caminhos de seus antepassados, sem indagação, sem raciocínio, e sem ambição, e com certeza você estará fazendo o bem. Que sequência de idéias, que espírito de aplicação, que massa e poder de esforço brotaram, em todos os caminhos da vida, das obras de homens como Brindley, Watt, Priestley, Arkwright ... Em que caminho da vida pode estar um homem que não se sinta estimulado ao ver a máquina a vapor de Watt?"

Arthur Young - Viagens na Inglaterra e no País de Galles, citado no livro de Eric Hobsbawm – A Era das Revoluções

08 agosto 2008

Guerra

"Talvez um dia tenhamos um mundo em que os adultos aprendam a resolver seus problemas com amor em vez do odio, um mundo em que as criancas possam crescer sem jamais ouvir os sons aterradores de bombas explodindo e metralhadoras disparando, sem medo que seus braços ou pernas sejam dilacerados por estranhos sem rosto."

Sidney Sheldon



Confronto com a Rússia se espalha por cidades da Geórgia -
Cerca de 1.400 morreram na Ossétia do Sul

03 agosto 2008

Aos afogados

"Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado."

Mário Quintana

01 agosto 2008

Lei Seca

Gosto de beber, e confesso sem o menor sentimento de culpa. Álcool, de vez em quando, em quantidade pequena, dá prazer sem fazer mal à maioria das pessoas. Aos sábados e domingos, quando estou de folga, tomo uma cachaça antes do almoço, hábito adquirido com os carcereiros da antiga Casa de Detenção. Difícil é escolher a marca, o Brasil produz variedade incrível. Tomo uma, ocasionalmente duas, jamais a terceira. Essa é a vantagem em relação às bebidas adocicadas que você bebe feito refresco, sem se dar conta das conseqüências. Cachaça impõe respeito, o usuário sabe com quem está lidando: exagerou, é vexame na certa.
Cerveja, tomo de vez em quando. O primeiro gole é um bálsamo para o espírito; no calor, depois de um dia de trabalho e horas no trânsito, transporta o cidadão do inferno para o paraíso. O gole seguinte já não é igual, infelizmente. A segunda latinha decepciona, deixa até um resíduo amargo; a terceira encharca.
Uísque e vodca, só tenho em casa para oferecer às visitas.
De vinho eu gosto, mas tomo pouco, porque pesa no estômago. Além disso, meu paladar primitivo não permite reconhecer notas de baunilha ou sabores trufados; não tenho idéia do que seja uma trava sutil de tanino, nem o aroma de cassis pisado, nem o frescor de framboesas do campo. Em meu embotamento olfato-gustativo, faço coro com os que admitem apenas três comentários diante de um copo de vinho: é bom, é ruim, e bebe e não enche o saco.
Feita essa premissa, quero deixar claro ser a favor da chamada lei seca no trânsito.
Sejamos sensatos, leitor, tem cabimento ingerir uma droga que altera os reflexos motores, o equilíbrio e a percepção espacial de objetos em movimento e sair por aí pilotando uma máquina na qual uma pequena desatenção pode trazer conseqüências fúnebres?
Ainda que você não seja ridículo a ponto de afirmar que dirige melhor quando bebe, talvez possa dizer que meia garrafa de vinho, três chopes ou uísques não interferem na sua habilidade ao volante.
Tudo bem: vamos admitir que, no seu caso, seja verdade, que você tenha maior resistência aos efeitos neurológicos e comportamentais do álcool e que seria aprovado em qualquer teste de resposta motora.
Imagino, entretanto, que você tenha idéia da diversidade existente entre os seres humanos. Quantas mulheres e quantos homens cada um de nós conhece para os quais uma dose basta para transtorná-los?
Quantos, depois de duas cervejas, choram, abraçam os companheiros de mesa e fazem declarações de amizade inquebrantável? Está certo permitir que esses, fisiologicamente mais sensíveis à ação do álcool, saiam por aí colocando em perigo a vida alheia?
Como seria a lei, então? Deveria avaliar as aptidões metabólicas e os reflexos de cada um para selecionar quem estaria apto a dirigir alcoolizado? O Detran colocaria um adesivo em cada carro estabelecendo os limites de consumo de álcool para aquele motorista? Ou viria carimbado na carteira de habilitação?
Talvez você possa estar de acordo com a argumentação dos advogados que defendem os interesses dos proprietários de bares e casas noturnas: "A nova lei atenta contra a liberdade individual".
Aí, começo a desconfiar de sua perspicácia. Restrições à liberdade de beber num país que vende a dose de pinga a R$ 0,50? Há escassez de botequins nas cidades brasileiras, por acaso? Existe sociedade mais complacente com o abuso de álcool do que a nossa?
Mas pode ser que você tenha preocupações sociais com a queda de movimento nos bares e com o desemprego no setor.
A julgar por essa lógica, vou mais longe. Como as estatísticas dos hospitais públicos têm demonstrado nos últimos fins de semana, poderá haver desemprego também entre motoristas de ambulâncias, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, agentes funerários, operários que fabricam cadeiras de rodas, sondas urinárias e outros dispositivos para deficientes físicos.
No ano passado, em nosso país, perderam a vida em acidentes de trânsito 17 mil pessoas. Ainda que apenas uma dessas mortes fosse evitada pela proibição de beber e dirigir, haveria justificativa plena para a criação da lei agora posta em prática.
Não é função do Estado proteger o cidadão contra o mal que ele faz a si mesmo. Quer beber até cair na sarjeta? Pode. Quer se jogar pela janela? Quem vai impedir?
Mas é dever inalienável do Estado protegê-lo contra o mal que terceiros possam causar a ele.
Drauzio Varella