31 julho 2008

Com que pernas?

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

Tom e Chico - Eu te Amo

30 julho 2008

O vôo

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo.
Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo.
Esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.
Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.
Rumo do céu?
Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.
Menotti Del Picchia

28 julho 2008

Eu não sei!


Parabéns!

Leoas

"A mulher de leão
Brilha na escuridão.
A mulher de leão, mesmo sem fome
Pega, mata e come.
A mulher de leão não tem perdão.
As mulheres de leão
Leoas são.
Poeta, operário, capitão
Cuidado com a mulher de leão!
São ciumentas e antagônicas
Solares e dominicais
Ígneas, áureas e sardônicas
E muito, muito liberais."
Vinícius de Moraes

26 julho 2008

Cachorros



Esfinge mental

"Com efeito, um dia de amanhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te."
Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas

25 julho 2008

Última Aula

O professor Randy Pauch faleceu ontem, 10 meses depois de dar sua última aula.

A ética dos encontros descartáveis

Falar de amor e sexo no século XXI implica refletir sobre a "sociedade do espetáculo" descrita pelo polêmico pensador francês Guy Debord. O autor analisa uma forma de estar no mundo em que a vida real é, inexoravelmente, pobre e fragmentada - e as pessoas são obrigadas a assistir e a consumir passivamente as imagens de tudo que lhes falta em sua existência subjetiva. Essa perspectiva me remete ao termo "ficar" - rótulo informal para os encontros efêmeros e descartáveis, nos quais ver, ser visto e aparecer reduzem os casais a machos e fêmeas no cio. Os pares são transitórios, os arranjos duram apenas algumas horas, talvez dias. Ou minutos. É o tempo do desejo saciado.A disposição para a entrega, para o "outro" e para o amor vive (ou sobrevive) sob o impacto do exagero, da aceleração e da competitividade. A sexualidade é experimentada como mais um produto de consumo, fica disponível num mercado de troca que não vai além da dimensão ilusória.
REFLEXOS DA GLOBALIZAÇÃO
"Ficar" denuncia uma nova ordem das coisas e o inevitável entrelaçamento entre indivíduo e mundo. Uma espécie de voyeurismo, que ao mesmo tempo exibe e excita, restringe o potencial criativo dos verdadeiros encontros à mera satisfação carnal. "Ficar" torna-se o absolutismo literal, comprometendo a fusão com os outros sentidos. Impede a elaboração das fantasias indispensáveis à compreensão do que está por trás da banal conexão entre os pares e do que poderia ser apreciado, sentido e vivido como metáfora para novos e mais criativos estilos de relacionamento.

Não fosse pela aproximação anestesiada entre os pares, devido ao consumo abusivo de álcool e drogas (ou a combinação de ambos), também eu não teria ressalvas a essa fonte de aprendizado para a vida adulta. Mas não são muitos os efeitos positivos do "ficar". Ao contrário: gravidez indesejada, disseminação de DSTs e ausência de auto-reconhecimento por meio do "outro" são conseqüências freqüentes - e às vezes desastrosas. Sem medo da rejeição, os jovens perdem o sabor da frustração, já que bocas, curvas, seios, músculos e genitais estão sempre disponíveis. Rejeitar, do latim rejectare, significa fazer eco, repercutir, lançar para fora, rebater. E a falta dessa experiência inibe a capacidade de perceber que o "outro" também tem liberdade para escolher.No cenário distorcido e nas imagens erotizadas da mídia vendem-se falsas necessidades e pseudodesejos inspirados por corpos exuberantes e figuras estereotipadas de homens e mulheres esvaziados de sua interioridade, privados de individualidade e raízes. Nessa exibição indiscriminada - que comercializa amor da mesma forma que produtos para higiene íntima - a alteridade não conta: só importa o que é manifesto e visto. O afeto é desvalorizado porque o que vale mesmo é o desempenho. Essa constatação nos desafia em outdoors, na televisão, nas revistas e pode ser testemunhada nos consultórios.Que homens e mulheres se constroem a partir desse espetáculo? Tentar uma compreensão na mais pura tradição junguiana me leva a recorrer aos arquétipos do inconsciente coletivo (prefigurações de toda experiência humana que se manifesta em imagens), contrapondo-os às configurações modeladas pela cultura de massa (os estereótipos, ou seja, características que se referem a um determinado padrão generalizado e pouco original). Se um está diretamente relacionado à multiplicidade de cada ser e, portanto, acessível a partir do cultivo de alma, o outro configura personagens fictícios e pasteurizados - modelos contemporâneos calcados em comportamentos coletivos que determinam personalidade, atitudes e modos de falar de muitos.Estrutura-se assim um ego contaminado pela projeção dos diversos modelos da cultura de massa: o vazio interior, preenchido por imagens estereotipadas, permeia a aproximação mágica entre os pares. Significa dizer que, por trás dessa magia, escondem-se pessoas quase sempre inconscientes do modo como se comportam em relação aos próprios movimentos psíquicos, e essa inconsciência, além de distanciá-las de seus processos internos, é amplamente permeável às influências dos apelos coletivos vindos de fora.

O "ficar", então, se legitima. Homens e mulheres experimentam, por meio da projeção, aquilo que não são e desenvolvem a fobia da entrega, do compromisso e da rejeição, autorizando a ética do provisório - uma lógica que interpreta um conjunto de valores passageiros e tenta estabelecer entre eles alguma ordem que os justifique. O não-envolvimento, efeito dessa projeção, funciona como vacina que os imuniza contra prováveis desencontros, que invariavelmente ocorrem quando as exigências de suas verdadeiras imagens anímicas projetadas não são mais atendidas. Inconscientes da própria essência, muitos optam por relacionamentos compulsivos e superficiais, que alternam a necessidade de amar e abandonar. Em sua não-existência vazia, na qual um pode ser todas as coisas para o outro, vivem como verdadeiros camaleões, que se defendem dos predadores assumindo as características que o meio lhes impõe. E passam a reproduzir infinitamente tal comportamento até que uma pálida e sutil inquietação interna os desarme para um primeiro contato com suas demandas da alma. Buscar na mitologia o pano de fundo que dá sentido às várias formas de estar no mundo é premissa básica da psicologia arquetípica. Associar histórias pessoais a mitos revela muito de nós, em várias etapas da vida. O mito de Ísis-Osíris, por exemplo, nos oferece informações e possibilidades de reflexão a respeito do "ficar". Quando Osíris foi assassinado e desmembrado pelo irmão Seth, Ísis saiu à procura dos pedaços desse corpo amado, esquartejado e disperso pelo Egito, juntando todas as partes, exceto o órgão sexual, que foi substituído por um falo de ouro. Osíris renasceu reconstituído em Amenti - o mundo subterrâneo análogo ao Hades grego, o lugar onde está a psique, a morada da alma. E com o falo artesanalmente construído gerou Hórus - a possibilidade de germinar o novo não-efêmero, que facilita a cada ser viver de forma inteira uma relação harmoniosa de amor e cumplicidade.
UNIVERSO INCONSCIENTE
A Ísis é atribuído o "poder" do renascimento, que psicologicamente significa o reconhecimento de que a possibilidade de discriminação no mundo visível está intimamente relacionada ao contato com os mistérios do universo inconsciente. Esse mito fala de mulheres que buscam nos encontros provisórios partes do Osíris despedaçado em cada homem com quem se relacionam; e de homens acreditando que o grande mistério de sua vida se restringe à potência do falo de ouro, por meio do qual são estabelecidas relações de poder e submissão.Quanto maior a anestesia provocada por imagens coletivas estereotipadas e superficiais, menor a possibilidade do contato com o mundo interior e com a realidade multifacetada do "outro". Nos dois últimos versos do "Soneto da fidelidade", Vinicius de Moraes propõe uma saída criativa para o misterioso prazer dos verdadeiros encontros: "que não seja imortal, posto que é chama, mas seja infinito enquanto dure".
Silvia Graubart, analista junguiana - Revista Mente e Cérebro

23 julho 2008

Pó de pirlimpimpim

Alcançar o aprendizado instantâneo é um desejo poderoso, pois o cérebro sem informação é pouco mais que estofo de macela. Emília, a sabida boneca de Monteiro Lobato, aprendeu a falar copiosamente após engolir uma pílula, adquirindo de supetão todo o vocabulário dos seres humanos ao seu redor. No filme Matrix (1999), a ingestão de uma pílula colorida faz o personagem Neo descobrir que todo o mundo em que sempre viveu não passa de uma simulação chamada Matriz, dentro da qual é possível programar qualquer coisa. Poucos instantes depois de se conectar a um computador, Neo desperta e profere estupefato: "I know kung fu". Entretanto, na matriz cerebral das pessoas de carne e osso, vale o dito popular: "Urubu, pra cantar, demora". O aprendizado de comportamentos complexos é difícil e demorado, pois requer a alteração massiva de conexões neuronais. Há consenso hoje em dia de que o conteúdo dos nossos pensamentos deriva dos padrões de ativação de vastas redes neuronais, impossibilitando a aquisição instantânea de memórias complexas.

Mas nem sempre foi assim. Há meio século, experimentos realizados na Universidade de Michigan mostraram que as planárias, vermes aquáticos passíveis de condicionamento clássico, eram capazes de adquirir, mesmo sem treinamento, associações estímulo-resposta por ingestão de um extrato de planárias previamente condicionadas (McConnell, J Neuropsychiat, 3: 542-548, 1962). O resultado, aparentemente revolucionário, sugeria que os substratos materiais da memória são moléculas. Contudo, estudos posteriores demonstraram que a ingestão de planárias não-condicionadas também acelerava o aprendizado, revelando um efeito hormonal genérico, independente do conteúdo das memórias presentes nas planárias ingeridas (Hartry et al., Science, 146: 274-275, 1964).A ingestão de memórias é impossível porque elas são estados complexos de redes neuronais, não um quantum de significado como a pílula de Emília. Por outro lado, é perfeitamente possível acelerar a consolidação das memórias através da otimização de variáveis fisiológicas naturalmente envolvidas no processo. Uma linha de pesquisa importante diz respeito ao sono, que comprovadamente beneficia a consolidação de memórias. Um grupo de pesquisadores da Universidade de Lübeck, Alemanha, testou os efeitos mnemônicos da estimulação cerebral com ondas lentas (0,75 Hz) ou rápidas (5 Hz) aplicadas durante o sono por meio de um estimulador transcraniano magnético. Os resultados mostraram que a estimulação de baixa frequência (mas não a de alta) é suficiente para melhorar significativamente o aprendizado de diferentes tarefas em humanos (Marshall et al., Nature, 444: 610-613, 2006). Ao que parece, as oscilações lentas que caracterizam o sono sem sonhos são puro pó de pirlimpimpim.

Sidarta Ribeiro - Revista Mente e Cérebro

21 julho 2008

Grande Pablo!

"Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio ou seta de cravos que propagam o fogo;
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.
Amo-te como a planta que não floriu e tem dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo o denso aroma que subiu da terra.
Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho;
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,
a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com o meu sono."
Pablo Neruda - O meu amor

A maravilha promiscua

"A internet é uma maravilha, a internet é um horror. Não sei como a Humanidade pôde viver tanto tempo sem o e-mail e o Google, não sei o que será da nossa privacidade e da nossa sanidade quando só soubermos conviver nesse cyberuniverso assustador. O mais admirável da internet é que tudo posto nos seus circuitos acaba tendo o mesmo valor, seja receita de bolo ou ensaio filosófico, já que o meio e o acesso ao meio são absolutamente iguais. O mais terrível é que tudo acaba tendo a mesma neutralidade moral, seja pregação inspiradora ou pregação racista — ou receita de bomba — já que a linguagem técnica é a mesma e a promiscuidade das mensagens é incontrolável. Não temos nem escolha entre o admirável e o terrível, pois acima de qualquer outra coisa a internet, hoje, é inevitável.Uma das incomodações menores da internet, além das repetidas manifestações que recebo de uma inquietante preocupação, em algum lugar, com o tamanho do meu pênis, é o texto com autor falso, ou o falso texto de autor verdadeiro. Ainda não entendi o recado ou a estranha lógica de quem inventa um texto e põe na internet com o nome de outro, mas o fato é que os ares estão cheios de atribuições mentirosas ou duvidosas. Já li vários textos com assinaturas improváveis na internet, inclusive vários meus que nunca assinei, ou assinaria. Um, que circulou bastante, comparava duplas sertanejas com drogas e aconselhava o leitor a evitar qualquer cantor saído de Goiânia, o que me valeu muita correspondência indignada. Outro era sobre uma dor de barriga desastrosa, que muitos acharam nojento ou, pior, sensacional. O incômodo, além dos eventuais xingamentos, é só a obrigação de saber o que responder em casos como o da senhora que declarou que odiava tudo que eu escrevia até ler, na internet, um texto meu que adorara, e que, claro, não era meu. Agradeci, modestamente. Admiradora nova a gente não rejeita, mesmo quando não merece.O texto que encantara a senhora se chamava "Quase" e é, mesmo, muito bom. Tenho sido elogiadíssimo pelo "Quase". Pessoas me agradecem por ter escrito o "Quase". Algumas dizem que o "Quase" mudou suas vidas. Uma turma de formandos me convidou para ser seu patrono e na última página do caro catálogo da formatura, como uma homenagem a mim, lá estava, inteiro, o "Quase". Não tive coragem de desiludir a garotada. Na internet, tudo se torna verdade até prova em contrário e como na internet a prova em contrário é impossível, fazer o quê?Eu gostaria de encontrar o verdadeiro autor do "Quase" para agradecer a glória emprestada e para lhe dar um recado. No Salão do Livro de Paris, na semana passada, ganhei da autora um volume de textos e versos brasileiros muito bem traduzidos para o francês, com uma surpresa: eu estava entre Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros escolhidos, adivinha com que texto. Em francês ficou Presque."
Autoria atribuída a Luis Fernando Verissimo, mas que ele mesmo diz ser de Sarah Westphal Batista da Silva, em sua coluna do dia 31 de março de 2005 do jornal O Globo.

19 julho 2008

Esteja pronto!

"A vida é como jogar uma bola na parede: Se for jogada uma bola azul, ela voltará azul; Se for jogada uma bola verde, ela voltará verde; Se a bola for jogada fraca, ela voltará fraca; Se a bola for jogada com força, ela voltará com força. Por isso, nunca "jogue uma bola na vida" de forma que você não esteja pronto a recebê-la. A vida não dá nem empresta; não se comove nem se apieda. Tudo quanto ela faz é retribuir e transferir aquilo que nós lhe oferecemos."
Albert Einstein

17 julho 2008

Amarelados

É a mesma a ruazinha sossegada.
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê? Se não adiantam mais!

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - Alegrias - Risos
Depois do Circo já ter ido embora!...
Mario Quintana - A Rua dos Cataventos, em 1940

16 julho 2008

O que julguei que senti

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa

14 julho 2008

Concurso de Inteligência

Apesar de sua prodigiosa capacidade intelectual, o homem – que devasta o planeta em malefício próprio – dificilmente durará 400 milhões de anos como os tubarões
Mas, afinal, o que é a inteligência? Muita gente pensa que é aquilo que se mede num teste de quociente de inteligência (QI). A capacidade de encaixar blocos de madeira ou realizar operações lógicas indica adaptabilidade a problemas desse tipo. Muitos outros tipos de inteligência existem, e para eles o teste de QI não serve. Ser inteligente é encaixar bem com a realidade, dissipando pouca energia e promovendo acomodações quando necessário. Comportamentos essenciais são inatos e estão presentes em todos os animais, como a alimentação, a fuga de predadores e a procriação. Outros comportamentos são aprendidos ao longo da vida, configurando ajustes ao ambiente. No caso do ser humano, a inteligência se baseia num vasto repertório de comportamentos adquiridos, o que nos dá grande flexibilidade de interação com o mundo. Embora tenhamos robustos aparatos neurais para a percepção e ação, grande parte de nosso enorme cérebro é dedicada à estocagem de memórias, tanto de perceptos quanto de atos motores. O arranjo cerebral particular que permite a façanha da civilização humana parece ter evoluído nos últimos 2 milhões de anos, mas data de apenas 10 mil anos a explosão cultural que nos permitiu tomar o planeta de assalto.
Muito antes do advento de nossos ancestrais hominídeos, animais bem diferentes eram os mais inteligentes da praça. Antes mesmo da supremacia dos dinossauros, iniciou-se a duradoura linhagem dos elasmobrânquios, peixes cartilaginosos como os tubarões e as arraias. As evidências fósseis indicam que mudaram muito pouco nos últimos 30 milhões de anos. Singrando o oceano no topo da cadeia alimentar, os tubarões realizam com maestria, desde tempos imemoriais, os três comportamentos inatos essenciais: comer, fugir e procriar. Antropomorfizado por Hollywood, o formidável tubarão-branco (Carcharodon carcharias) se transformou num ardiloso vilão. Exageros à parte, muitos tubarões têm cérebro proporcionalmente grande para seu peso corporal, superando algumas aves e mamíferos. É um aparato neural de grande sofisticação, em boa parte dedicado à percepção química e elétrica dos arredores. Há também a robusta circuitaria motora, capaz de comandar corpanzis de até 12 metros com a agilidade de torpedos teleguiados. Cérebros que não guardam muitas memórias, mas interagem com o ambiente há 400 milhões de anos com prodigiosa eficiência. Em time que está ganhando a evolução não mexe. E no entanto, muitas espécies de águas rasas estão desaparecendo, pois não há leis internacionais que impeçam a pesca em grande escala dos elasmobrânquios. Especialistas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) reportaram recentemente que 11 de 21 espécies estudadas estão vulneráveis à extinção. O recém-chegado primata bípede, com polegar opositor e cérebro descomunal, aprecia cação frito, moqueca de arraia e sopa de barbatana de tubarão. A inteligência do bicho homem, que devasta o planeta em malefício próprio, dificilmente durará 400 milhões de anos.
Sidarta Ribeiro - Revista Mente e Cérebro

12 julho 2008

Mentiras aceitas

Ídolos para quem precisa
Marcio Renato dos Santos - Gazeta do Povo, em 12/07/2008
Ao invés de um Alexandre (o Grande), um sorridente catapultado via reality show. No lugar de um Pelé ou de um Garrincha, um talvez artilheiro ou outro pseudocraque. Quase ninguém mais ouve, e admira, uma cantora como Aracy de Almeida: as audiências contemporâneas preferem quem segure o tchan, amarre o tchan – tchan, tchan, tchan, tchan. Hoje, vivemos a época das celebridades. Instantâneas e descartáveis (sobretudo, substituíveis).
O professor de Crítica da Mídia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS) Francisco Rüdiger explica que, diferentemente de períodos passados, em que a humanidade valorizava quem tinha méritos indiscutíveis – como heróis, guerreiros, empreendendores e santos –, atualmente celebra-se o homem banal e ordinário. "A essência da celebridade é a banalidade do homem comum", define.
Rüdiger ainda afirma que, na contemporaneidade, tudo é nivelado por uma média. "Pela mediocridade". (...) O professor de Sociologia da Comunicação de Massa da Universidade de São Paulo (USP) Álvaro de Aquino e Silva Gullo esclarece que a chamada celebridade não passa de construção dos meios de comunicação de massa. "A mídia transforma qualquer sujeito em celebridade. De repente, uma atriz se torna uma semideusa. Tudo o que ela fala e faz passa, então, a ser modelo de comportamento", analisa.
Modelos?
Gisele Bündchen usa uma sandália e milhões de brasileiros fazem o mesmo. Isso é ou seria "normal"? O coordenador do departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Mário Eduardo Pereira garante que os fãs, muitas vezes, se espelham em uma celebridade na ilusão de que esses sujeitos famosos são completos ou perfeitos. "O ser humano cultiva a esperança de que pode haver perfeição e, por isso, idealiza uma celebridade. Mas não existe ser perfeito. Quanto mais desamparada a pessoa, maior a tendência em idealizar alguém", comenta.
(...)

Restrições
(...) O professor Francisco Rüdiger, da PUCRS, ao analisar Amy e Britney, entre outras celebridades, elabora uma possível definição para o "fenômeno": "Celebridade é um aspecto da fortuna trágica do homem comum no mundo contemporâneo". O doutor Álvaro de Aquino e Silva Gullo, da USP, ao perceber que pessoas se espelham em Britney e Amy, estabelece uma sentença, no caso, para os admiradores de celebridades: "O fã é o idiota receptor que aceita a mentira (celebridade). O fã é a imbecilidade. Apenas a falta de perspectivas pode colocar a celebridade como modelo".

A Tirania do Rosto Público
Luciana Romagnolli - Gazeta do Povo, em 12/07/2008
É pouco arriscado escrever que o leitor nunca viu Amy Winehouse pessoalmente, mas sabe quem é a moça. Mais que isso, conhece detalhes de seus escândalos autodestrutivos, envolvendo o marido preso, álcool em excesso, drogas pesadas. (...)
O que torna essa garota objeto de interesse de muitos para que tanto se saiba sobre ela? Como se sustenta esse culto à celebridade? E por que o destino de inúmeras delas é a auto-destruição? Algumas idéias para responder a essas perguntas afloram do livro Celebridade, escrito por Chris Rojek, professor de Sociologia e Cultura na Nottingham Trent University, na Inglaterra. Lançado originalmente em 2000, só agora a obra chega ao país, pela Rocco.

Vazio existencial
As celebridades são um fenômeno da “era do homem comum”, acredita o autor. Teriam encontrado seu espaço no vazio existencial, na ausência de modelos superiores que nos guiam desde que reis e deuses deixaram de ser crenças inabaláveis.
“A crescente importância do rosto público no dia-a-dia é uma conseqüência da ascensão da sociedade pública, uma sociedade que cultiva o estilo pessoal como um antídoto para a igualdade democrática formal”, escreve o inglês.
Viver em democracia. O declínio da religião organizada. Falta um ponto nessa tríade desenhada por Rojik. A transformação do cotidiano em mercadoria completa o ambiente em que teria germinado o fenômeno das celebridades. No caso, um “mercado de sentimentos”, a remediar os desejos frustrados do público, despistá-los num “culto à distração”.

Encenação
O encantamento que a celebridade exerce sobre o público só acontece, na opinião do autor, porque cada aparição sua é encenada. Cercada de cuidados por intermediários culturais: agentes, publicitários, marqueteiros, fotógrafos, personal-trainers, figurinistas, maquiadores, consultores e assistentes pessoais, responsáveis por moldar seus corpos e personalidades. Com a participação imprescindível da mídia, a distância dos fãs e a falta de reciprocidade na relação não deixam que o mistério se desfaça.
“O status de celebridade sempre implica uma divisão entre um eu privado e um eu público”, sentencia o livro. Por essa partilha dual, e as conseqüências que lega à ela, Rojik recebeu críticas de que estaria ultrapassado diante da propagada idéia pós-moderna de identidade fragmentada. Mas a argumentação do professor não deixa de ser interessante.
Ele relembra uma ironia de Cary Grant (1904 – 1986). O ator que dividia as atenções em Hollywood com estrelas como Audrey Hepburn e Grace Kelly, dizia que tanto ele quanto os seus fãs adorariam ser Cary Grant.
Na frase de efeito, a consciência de que a figura pública que encarnava era completamente distinta do seu eu “privado”, outro. Essa fratura, crê Rojik, seria capaz de culminar na perda da identidade, engolida pelo eu “público”. Peter Sellers, cita também, costumava reclamar que, ao concluir seu papel em um filme, ele próprio “desaparecia”.
Intrigante paradoxo. Transcender o eu “privado”, anônimo, seria um dos principais motivos que impulsionaria alguém à batalhar pelo status. Mas, quando esse desejo se realiza, o risco é duplo: sentir-se engolido por um rosto público que é seu, mas estranho. Ou pior. Sentir-se aniquilado ao perceber que, aos olhos alheios, o seu eu “público” é o único autêntico.
“O eu verídico pode fazer tentativas cada vez mais desesperadas de vencer a tirania do rosto público”, escreve Rojik. E aqui Amy Winehouse, o descontrole de Britney Spears e a overdose de calmantes que matou Marilyn Monroe podem vir à mente. “O rosto público recorre a tentativas cada vez mais dramáticas de alertar o público para o horror, a vergonha e a abusiva impotência do eu verídico”, completa.
O público assiste ao espetáculo. Com mais ou menos compaixão.

08 julho 2008

Contra Mitos!

"Take a holiday from reality whenever you like, and come back without so much as a headache or a mythology."

Aldous Huxley

"I am 100 percent in favor of the intelligent use of drugs, and 1,000 percent against the thoughtless use of them, whether caffeine or LSD."

"People use the word 'natural'. What is natural to me is these botanical species which interact directly with the nervous system. What I consider artificial is 4 years at Harvard, and the Bible, and Saint Patrick's cathedral, and the sunday school teachings."
Timothy Leary

07 julho 2008

Custa mais do que vale

"Temos necessidade, na dura luta pela vida, de algo que perdure, e enchemos o nosso entendimento de futilidades de todo o tipo, na inútil esperança de manter o nosso prestígio. O homem culto, bem informado de tudo, é o ideal moderno. Mas a mente deste homem bem informado é uma coisa horrível. É como uma miscelânea monstruosa e empoeirada, onde os objetos amontoados custam sempre mais do que valem."
Oscar Wilde

06 julho 2008

Sonhos

"Há quem diga que todas as noites são de sonhos.
Mas há também quem garanta que nem todas,
só as de verão.

No fundo, isto não tem muita importância.
O que interessa mesmo não é a noite em si,
são os sonhos.

Sonhos que o homem sonha sempre,
em todos os lugares, em todas as épocas do ano,
dormindo ou acordado."
William Shakespeare

Quem sou?

"Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes."
Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa)

05 julho 2008

The lips I am missing

Máscaras

"Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
e que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário.
Como um cão tolerado pela gerência por ser inofensivo.
E vou escrever esta história para provar que sou sublime."
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

04 julho 2008

Homens X Mulheres

A última mesa desta quinta-feira na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), intitulada "Sexo, Mentiras e Videotape", reuniu três escritoras --a gaúcha Cíntia Moscovich, a portuguesa Inês Pedrosa e a inglesa Zoë Heller -- e um mediador homem, o escritor português José Luis Peixoto, para discutirem sobre a literatura feminina e o mundo sob a visão da mulher.

Confira o especial da Flip

As três escritoras iniciaram as discussões lendo trechos de seus livros mais recentes: "Por que Sou Gorda, Mamãe?', de Moscovich (Record, 2006), "Fica Comigo Esta Noite", de Pedrosa (2007, Planeta do Brasil), e "Anotações sobre um Escândalo", de Heller (Record, 2006), que deu origem ao filme "Notas sobre um Escândalo", de 2006, com Cate Blanchett e Judi Dench.

Densos e repletos de questões e conflitos femininos, os trechos lidos serviram de ponto de partida para as perguntas do mediador. Moscovich falou sobre obesidade e relações com a mãe, Heller discorreu sobre conflitos sexuais, solidão e exposição e, por fim, Pedrosa sintetizou o mundo feminino em tópicos sexuais e de raízes,- a história de seu livro se passa em Salvador.

Heller abriu a conversa falando da exposição humana relatada em seu livro [a personagem é uma mulher de 42 anos que tem um relacionamento sexual com um menino de 14, e a história se transforma em um escândalo]. A escritora questionou o comportamento da imprensa, dizendo que pelo que sabe, jornalistas são, ao menos em sua maioria, pessoas bem informadas, com curso superior, e que, em situações como as que envolvem um escândalo, parecem ficar com a cabeça muito pequena.

"Existe o sexo sadio e o não-sadio. Mulheres adultas que têm relações com meninos de 14 anos fazem parte do grupo não-sadio. Em minha opinião, se uma mulher se interessa por um cordeirinho, e esse cordeirinho também quer, não vejo nenhum problema nessa relação", disse.

Segundo ela, existe uma diferença de abordagem entre o mundo feminino e o masculino. "Na mesma situação, homens e mulheres são classificados de formas completamente distintas: a mulher faz sexo não-sadio, mas o homem é um predador."

Pedrosa fez coro a essa questão. Ela falou sobre o pudor dos portugueses e do preconceito que ronda algumas formas de abordagem da sexualidade. Lembrou de uma visita de Caetano Veloso a Portugal em que ele cantou trecho de uma música que dizia "Estou-me a vir" [estou tendo um orgasmo], e que deixou desconcertadas várias pessoas do público que o ouvia.

Ela lembrou também da forma castradora como a sociedade portuguesa ainda trata alguns de seus grande autores, como a escritora e poetisa Maria Teresa Orta, cujos textos expõem de maneira crua a questão do sexo.

Questionadas sobre a sexualidade da literatura, Heller disse não existir literatura feminina nem literatura homossexual nem literatura judaica nem negra. "O que existe é literatura boa ou literatura ruim." Pedrosa [que foi editora da revista "Marie Claire" portuguesa por dez anos] concordou com a colega, acrescentando que o feminismo, enquanto precisar existir, só fará sentido se for compartilhado da mesma maneira por homens e mulheres. "É preciso acabar com a tolerância à tradição. Quando os homens falam, é universal. Quando as mulheres falam, é uma questão de gueto. Não pode haver essa divisão", disse.

Ela explicou que quando ainda era editora da revista "Marie Claire" --que fez questão de classificar como uma publicação feminista, e não feminina--, proibiu sua equipe de reportagem de perguntar a mulheres sobre como elas conseguiam conciliar carreira e vida pessoal. Mas permitiu a pergunta a homens, alegando que estes que nunca tiveram a chance de responder a esse questionamento.

No final da discussão, o mediador disse ter ficado surpreso por ler, logo nas primeiras páginas de Heller, sobre a masturbação quase compulsiva de uma mulher. Em reposta, ela disse: "Eu estou encantada com sua ignorância, José. Estou feliz por poder te passar esse conhecimento, sobre a existência da masturbação feminina".

LIGIA BRASLAUSKAS - Folha Online

As certezas

"De tudo, ficam três coisas:
a certeza de que estamos sempre começando;
a certeza de que precisamos continuar;
a certeza de que seremos
interrompidos antes de terminar.
Portanto devemos:
fazer da interrupção um caminho novo;
da queda, um passo de dança;
do medo, uma escada;
do sonho, uma ponte;
e da procura, um encontro."

Fernando Pessoa

03 julho 2008

Let it be!

É a vida

"Se um homem tiver que ficar de pé, nu, na escuridão, no frio e na treva, no topo de uma montanha altíssima, sem poder mover os pés para o lado para não cair no abismo, sem poder comer, nem dormir, nem descansar, tiritando de frio sob a chuva gelada, durante um milhão de anos - e alguém perguntar se ele quer morrer, ele dirá que não, que muito obrigado, que prefere continuar assim por mais um milhão de anos."
Dostoievski