29 abril 2008

Gozoso

"Você meu mundo, meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas. Meu sono festival, meu acordar entre girândolas. Meu banho quente, morno, frio, quente, pelando. Minha pele total. Minhas unhas afiadas aceradas aciduladas. Meu sabor de veneno. Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. Meu suplício. Minha mansa onça pintada pulando. Minha saliva, minha língua passeadeira possessiva, meu esfregar de barriga em barriga. Meu perder-me entre pêlos algas águas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova, cova, cova cada vez mais funda estreita mais, mais. Meu gemidos, gritos, uivos, guais, guinchos, miados, ofegos, ah! oh! ai! ui! nhem! ahah! Minha evaporação, meu suicídio gozoso glorioso."
Carlos Drummond de Andrade - O Amor Natural

28 abril 2008

O Homem Moderno

"Assistimos hoje ao fim de uma civilização, e podemos dizer que ela se encerra com a queda em bloco dos sistemas totalitários nos países do Leste Europeu, embora ainda existam redutos a serem desmantelados nessa mesma linha política e ideológica e se anunciem novas prisões para o homem, com outra roupagem e faces bem diversas.
Assim como nos último anos entraram em moda certos produtos light - o cigarro, algumas bebidas ou certos alimentos - também foi sendo gerado um tipo de homem que poderia ser qualificado de homem light.
Qual é seu perfil psicológico? Como poderia ser definido? Trata-se de um homem relativamente bem-informado, mas de escassa educação humanista, muito voltado ao pragmatismo, por um lado, e a vários assuntos, por outro. Tudo lhe interessa, mas de forma superficial, não é capaz de fazer uma síntese daquilo que percebe e, como conseqüência, se converte numa pessoa trivial, superficial, frívola, que aceita tudo, mas que carece de critérios sólidos em sua conduta. Tudo nele se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo.
Viu tantas mudanças, tão rápidas e em tempo tão curto, que começa a não saber a que se agarrar ou, o que dá no mesmo, a fazer afirmações do tipo 'vale tudo', 'não me interessa' ou 'as coisas mudaram'. E assim encontramos um bom profissional em seu campo específico de trabalho, que conhece bem a tarefa que tem nas mãos, mas que fora desse contexto fica à deriva, sem idéias claras, preso - como está - num mundo cheio de informação, que o distrai, mas que pouco a pouco o converte num homem superficial, indiferente, permissivo, que vive um enorme vazio moral.
As conquistas técnicas e científicas - impensáveis há poucos anos - nos propiciaram avanços evidentes: a revolução da informática, os progressos da ciência em seus diversos aspectos, uma ordem social mais justa e perfeita, uma preocupação mais firme com os direitos humanos, a democratização de tantos países e, agora, a ruína em bloco do comunismo. Mas, diante de tudo isso, devemos colocar em discussão aspectos da realidade que funcionam mal e que mostram a outra face da moeda: a) materialismo: faz com que um indivíduo obtenha certo reconhecimento social pelo simples fato de ganhar muito dinheiro; b) hedonismo: viver bem a qualquer custo é o novo código de comportamento, o que significa a morte dos ideais, a ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez mais novas e passageiras; c) permissividade: arrasa os melhores propósitos e ideais; d) revolução sem finalidade nem projeto: a ética permissiva substitui a moral, o que engendra um desconcerto generalizado; e) relativismo: tudo é relativo, o que leva a cair na absolutização do relativo; brotam, assim, alguma regras presididas pela subjetividade; f) consumismo: representa a fórmula pós-moderna da liberdade.
Assim, as grandes transformações sofridas pela sociedade nos últimos anos são, a princípio, contempladas com surpresa, depois com progressiva indiferença ou, em outros casos, como a necessidade de aceitar o inevitável. A nova epidemia de crises e rupturas conjugais, o drama das drogas, a marginalização de tantos jovens, as greves dos trabalhadores e outros fatos da vida cotidiana, tudo isso prontamente se admite como algo que está aqui e contra o qual não se pode fazer nada.
Dos meandros dessa realidade sociocultural vai surgindo o novo homem moderno, produto de seu tempo. Se observarmos melhor, veremos que esse homem tem os seguintes componentes: pensamento fraco, convicções sem firmeza, assepsia em seus compromissos, indiferença sui generis feita de curiosidade e relativismo ao mesmo tempo... sua ideologia é o pragmatismo, sua norma de conduta, a vigência social - que vantagens leva, o que está na moda; sua ética se fundamenta na estatística, substituta da consciência; sua moral repleta de neutralidade, carente de compromisso e subjetividade, fica relegada à intimidade, sem se atrever a sair em público."

Texto extraído do livro 'O Homem Moderno: a luta contra o vazio', de Enrique Rojas.

25 abril 2008

Amanhã apaixone-se.




Porque o dia seguinte é o dia mais importante da sua vida. É no dia seguinte que sabemos se o dia de ontem valeu a pena. É no dia seguinte que acordamos para a realidade, a vida da gente começa no dia seguinte. E só existe uma maneira de viver: apaixonado.
Por isso dance, como se ninguém estivesse vendo você. Trabalhe como se não precisasse de dinheiro. Corra como se não houvesse chegada. Ame como se nunca tivesse sido magoado antes. Acredite, como se não tivesse frustração. Beije como se fosse eterno. Sorria como se não existissem lágrimas. Durma como se não houvesse amanhã. Crie, como se ao houvesse crítica. Vá, como se não precisasse voltar. Proponha, como se não existissem as recusas. Levante, como se não tivesse caído. Fale, como se não existisse o certo e o errado. Aprecie, como se fosse eterno.
Prefira ser em vez de ter, sentir em vez de fingir, ver em vez de esconder. Abrir em vez de fechar. Apaixonar-se é um exercício de jardinagem. Prepare o terreno, semeie, seja paciente. Espere. Regue e cuide. Terá um jardim. Mas esteja preparado, porque haverão pragas, secas ou excesso de chuvas. Se desistir não terá um jardim, terá um descampado.
A paixão não se vê, não se guarda, não se prende, não se controla, não se compra e não se vende. A paixão é a diferença entre o sucesso e o fracasso. Apaixonados não esperam, agem. A paixão é o que faz coisas iguais serem diferentes. Lembre-se que a arca de Noé foi construída por apaixonados, que nada conheciam de navegação ou embarcação. E o Titanic foi construído por engenheiros fabulosos.Amanhã quando acordar, pense se hoje valeu a pena. E apaixone-se. Porque em 24 horas você vai entrar no dia mais importante da sua vida: o dia seguinte.

16 abril 2008

Comunicação é diálogo

"Ninguém é dono da razão final a priori. A razão não se impõe pela propaganda, pelo monólogo do proselitismo. Ela só adquire validade quando faz sentido natural para o conjunto dos interlocutores - e comunicar é justamente isto: tecer o sentido comum. Comunicar é buscar pontes de entendimento. É dialogar.
Os responsáveis pela mediação do debate público não podem mais ignorar o fato de que nada é mais danoso - e enganoso - do que pôr os meios de comunicação a serviço de ideários prontos e fechados. Esse tipo de prática - em meios públicos ou privados, tanto faz - não constrói confiança, não estimula a divergência e a participação crítica, não emancipa o cidadão. Nos dias atuais, de inovações tecnológicas e políticas que não cessam, nenhuma sociedade gera um espaço público saudável na base da obediência e da concordância. Foi-se o tempo em que comunicação era um alto-falante na pracinha da província. Foi-se o tempo em que a receita era adestrar as massas.
As técnicas de massificação corroem a credibilidade dos próprios meios. Não promovem o encontro de opiniões complementares, não respeitam nem assimilam os pontos de vista alternativos - apenas militam para fazer prevalecer o interesse de quem exerce poder econômico ou político sobre a mediação do debate. Não raro, poder abusivo. A massificação até consegue potencializar fanatismos de diversas naturezas, mas não gera sabedoria compartilhada. Pode compactar as maiorias em momentos específicos, mas no longo prazo conduz à destruição. O século 20 é pródigo em exemplos trágicos - e, no século 21, ainda há quem insista em retomar e reeditar as fórmulas ultrapassadas.
Aos mais ansiosos os três parágrafos acima talvez soem genéricos, abstratos, descolados das atualidades ditas jornalísticas, dos dossiês da vida, da dengue desgovernada, dos congestionamentos. E, no entanto, essas palavras, assim mesmo, aparentemente vagas, tocam no âmago da qualidade do debate público e na capacidade que ele tem ou não tem de encarar e superar seus impasses. Eis aqui um dos temas mais graves dos nossos tempos. Um dos mais urgentes, também. Eis aqui um tema visceralmente jornalístico.
No universo da comunicação social brasileira, temos vivido sob o risco crescente da polarização extremada e suas deturpações inerentes: a desqualificação de quem diverge, a tentativa de dizimar a reputação alheia, a agressividade que se volta contra a pessoa sem se ocupar dos argumentos, as manipulações deliberadas. O mesmo risco pesa de modo particular sobre o jornalismo. Embora não caiba, aqui, nenhum tipo de generalização, é possível notar, em alguns episódios, que notícias e manchetes são moldadas, voluntária ou involuntariamente, segundo uma lógica que tende a submeter o significado dos fatos a uma disputa meramente partidária e ocasional. Aí, o relato dos acontecimentos vira um acessório no embate oposição versus situação e o noticiário se reduz a um ringue em que se enfrentam as vaidades da esquerda, ou do que se diz esquerda, e da direita, ou daquilo que se supõe ser a direita. De um lado, é notícia o que fere o governo. Do outro lado, é notícia o que desmoraliza a oposição. Onde estão os fatos? Onde estão as discussões de fundo? Onde está a realidade complexa e surpreendente? Será que o que define a essência de um veículo jornalístico, então, é isto: saber se ele é contra ou a favor desse ou daquele governo?
O jornalismo - assim como a comunicação social - não funciona adequadamente quando se deixa reger pelos parâmetros da lógica partidária. Ao se render a esses parâmetros, a imprensa renuncia a seu campo próprio e se converte em instrumento de causas estranhas ao direito à informação. A própria política - a política em seu sentido mais alto - sai prejudicada.
Em vez de operar segundo ditames partidários de ocasião, cabe à imprensa observar e cobrir os partidos e suas escaramuças, vendo-os de fora. Os interesses dos partidos e dos governos devem representar, para os encarregados da comunicação social, não uma baliza para alinhamentos ou combates sistemáticos, mas um fenômeno externo. Infelizmente, contudo, se observarmos com cuidado, veremos que esse tipo de desvio ainda não foi totalmente superado. Entre nós ainda sobrevive uma concepção excessivamente instrumental dos meios de comunicação, que são vistos - e, por vezes, são administrados - como porta-vozes da corrente A ou B e nada mais.
Ora, sem prejuízo das visões de mundo que toma como missão - visões que jamais se deveriam rebaixar a programas partidários -, um órgão de imprensa alcança sucesso quando presta serviços e dá voz a seu público e quando abre novos canais entre os cidadãos. Sobretudo agora, com as novas tecnologias, o diálogo passa a ser o centro do sistema nervoso da comunicação. Os veículos ganham mais vitalidade quanto mais escapam da opacidade, quanto mais refletem a diversidade e quanto menos pretendem ser, eles mesmos, uma posição fechada a ser seguida pelo rebanho.
O Brasil precisa de pontes de diálogo - e só poderá obtê-las da qualidade de sua comunicação social, não das querelas partidárias. Há bons pensadores de um lado e de outro. Há homens públicos de valor dentro e fora do governo. Que suas idéias dialoguem no espaço público. Se a comunicação social e o jornalismo se deixarem formatar e organizar pelas trincheiras que partidos raivosos tentam imprimir sobre a realidade, não serão capazes de erguer as pontes necessárias. Continuarão, eles mesmos, entrincheirados. Abdicarão de seu compromisso com o público e com a busca da verdade - que, a propósito, não é monopólio nem de governos nem da oposição. "
Eugênio Bucci, formado em Jornalismo e Direito pela USP, doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade, escreve quinzenalmente para o Observatório da Imprensa na internet

14 abril 2008

Incomunicabilidade

A Gazeta do Povo de hoje publicou uma excelente entrevista da escritora Lya Luft. Segue os melhores momentos:

"O silêncio nem sempre acalma, acomoda, pacifica. Em suas entranhas, existe, muitas vezes, um poder corrosivo que destrói até a mais inquebrantável das relações. Interessada na incomunicabilidade que muitas vezes surpreende pessoas que se amam, a escritora Lya Luft produziu um punhado de contos que, reunidos, formam o volume O Silêncio dos Amantes, que a editora Record acaba de lançar. Tratava-se, originalmente, de um romance, que não se sustentou como tal e, fragmentado, resultou em 20 contos, costurados por uma mesma dor: a incompreensão que subitamente nasce em relações aparentemente bem estabelecidas.
"Conto também sobre o amparo que certas pessoas necessitam e que, por um motivo ou outro, não recebem no tempo certo", (...). Nesse caminho, trilham histórias como a do rapaz incompreendido pelos pais e que desaparece misteriosamente (voando, reza uma lenda); ou do menino que não se sente encaixado no mundo por ser anão. Histórias cujo destino não seria trágico se uma frase, aquela esperada, fosse dita. (...)

As histórias continuam como uma biografia de suas inquietações e assombramentos, como você disse certa vez?
Sim, não é minha vida, que é bem simples - tive uma infância feliz, tranqüila. Não tive uma mãe alcoólica, nem um filho anão (risos). São assuntos que me incomodam, me fascinam, a questão da incomunicabilidade: a palavra que você não disse quando devia ter falado e a palavra que você disse quando devia ter-se calado. A grande dificuldade dos relacionamentos humanos se baseia em grande parte na incomunicabilidade, da forma que você vê o outro e como isso pode provocar o preconceito. Daí vem a origem de meus personagens: o anão, a autodestruição da mãe alcoólica, o marido suicida. Quanto conhecemos do outro com quem convivemos? Boa parte da arte universal surgiu a partir dessa questão sobre quem é o outro.
(...)

Essa inquietação é percebida ao longo de sua obra: a busca por uma resposta que nunca vem...
E, por não entender isso, acabo escrevendo. Sempre a questão das relações humanas, o drama da existência, que tanto pode ser fascinante como cruel. Escrevi uma coluna sobre o mal de Alzheimer, o mistério de uma pessoa que entra em um outro mundo onde você não a acompanha mais. É algo trágico, inexorável. Minha mãe morreu desse mal depois de muitos anos. Por isso que a vida é bela e cruel.

O medo da incomunicabilidade atinge principalmente os escritores?
Nunca pensei nisso. A literatura é um território muito feliz para mim. Nunca pensei em ser compreendida, pois a arte não pode ser compreendida, mas perseguida. Ela deve desencadear em qualquer tipo de leitor a sua possibilidade de emoção e de criação do pensamento. Não me preocupo em ser lida ou mesmo compreendida.

E o que você me diz da incomunicabilidade no silêncio?
Ninguém nunca se comunica perfeitamente, tampouco é inteiramente compreendido. É o que torna a vida interessante.

Mas não é uma fonte de tristezas?
Não, porque o mistério torna o outro interessante. Veja os relacionamentos amorosos e familiares, que nos são mais próximos. Se você conhece tudo sobre o outro, a vida se tornaria um tédio completo. Nem renderia boas histórias para a literatura. Trato bem disso em uma das histórias, O Que a Gente Não Disse, sobre a mulher que se surpreende quando o marido se suicida: ela acreditava conhecer tudo sobre ele, mas não sabia do essencial. Não vejo, portanto, apenas crueldade e tristeza no silêncio, mas também momentos engraçados, ternos. O que pretendo sempre é, ao narrar essas histórias, mesmo as mais difíceis, fazer com muita poesia."

13 abril 2008

A Dama do Lotação

"Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!
A SUSPEITA
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!
A CERTEZA
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada.
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!
A DAMA DO LOTAÇÃO
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.
O DEFUNTO
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo."

Nelson Rodrigues

12 abril 2008

Cadaver


"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida."

Fernando Pessoa

Mais vida, Menos vida

"O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela."
Fernando Pessoa

11 abril 2008

Passado

Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.
Fernando Pessoa - Ricardo Reis

04 abril 2008

Caráter não tem cor

Dia 04 de abril de 1968 acabavam com a vida de um grande homem. Quarenta anos depois o mundo ainda está longe de ver o sonho de Martin Luther King tornar-se realidade.
"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação. Cem anos atrás, um grande americano (Lincoln), o qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição. De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes". Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça. Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação voltar aos negócios de sempre.
Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só. E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?" Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza. Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são os veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero. Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta. Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado. "Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!" E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro. E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire. Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas de Nova York. Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado. Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia. Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas, ouvirei o sino da liberdade. E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho espiritual negro:"Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."
Martin Luther King, em 1963.

03 abril 2008

Dogma econômico

"Não há cura simples para a pobreza, mas não deveríamos, em nossa sofisticação, ter receio do óbvio. [...] Até agora, meu enfoque para o problema da pobreza tem sido fortemente tradicional: nós precisamos ajudá-los a ajudar a si próprios. Isso é bom, enquanto que meramente ajudá-los tem sempre sido considerado mau. Agora eu me aventuro a pensar que é chegado o momento de reexaminar esses bons dogmas calvinistas que combinam tão bem com nossa idéia de como se pode economizar dinheiro. Precisamos considerar uma solução pronta e efetiva para a pobreza, que é proporcionar a todos uma renda mínima. Os argumentos contra essa proposta são numerosos, mas a maior parte deles são desculpas para não pensar a respeito de uma solução, mesmo de uma que é excepcionalmente plausível."
John Kenneth Galbraith, em 'A view from the stands'