Escolhi um trecho do livro Provavelmente Alegria, de Saramago, para ser o primeiro texto desse blog.
"Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida.Isso nos baste."
A sua profundidade é imensa e as interpretações são inúmeras. Vamos a minha:
"Na ilha por vezes habitada do que somos" - na maior parte do tempo não percebemos que estamos vivos, não temos essa consciência, só vamos vivendo. Mas perceber que se está vivo é o que realmente diferencia homens de animais.A diferença básica entre os homens e o resto dos animais não é a capacidade de pensar. A maior diferença é que uns têm consciência de que estão vivendo e outros não. A maioria dos seres vivos, tanto aqueles que pensam, quando aqueles que pensam que pensam ou até aqueles que não pensam, não têm percepção da sua existência. Muitas pessoas passam a vida toda sem perceber, sem refletir. Até mesmo quem tem algo dessa consciência, passa a maior parte do tempo, ou da vida, distraído com preocupações cotidianas inúteis. Mas, em alguns raros momentos, param e olham para o céu, ou escutam em uma música, ou percebem em um belo quadro. É esse o momento que mais importa. É quando se sente a vida. Sente que é parte de algo maior e que deve dar o valor certo para isso. É ai, nesse momento, que se diferenciam os homens dos animais. Oscar Wilde tem uma citação perfeita sobre isso: "Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe."
"Há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer" - por pior que sejam os problemas, nós podemos superá-los. Seja como for, as alegrias e tristezas fazem parte da vida. Então sabemos que todas as preocupações cotidianas são inúteis, porque o que realmente importa é a percepção de estar vivo. Essas preocupações cotidianas, nos impedem de ver o que realmente importa. Esses são os excessos que escondem a essência da vida.
"Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites" - limites é porque somos feitos de terra e pra lá vamos voltar, vamos morrer. Não somos mais do que isso, além de um contorno (corpo) e vontades (mente). Somos essa imperfeição. Mas, mesmo assim, merecemos a felicidade através da simplicidade. Se nós fossemos perfeitos, sem problemas, não seríamos felizes e nem teríamos a chance de ser, porque não daríamos o menor valor para a alegria. Se percebermos isso, poderemos viver a vida em sua plenitude e aproveitar tudo que vem dela.. "até os ossos".
"Libertemos devagar a terra" - deixemos o tempo passar porque isso é inevitável. Mas nunca desperdiçá-lo.
"Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste." - Tudo o que importa é saber que somos vida. Que estamos vivos. Porque isso é tudo que nos basta para sermos completos.