11 novembro 2007

O ter e o ser

"No livro VII de A República, Platão narra que Sócrates propôs a seus ouvintes imaginarem um grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar para fora, onde há uma fogueira cujas chamas projetam dentro da caverna as sombras de quem passa diante da estrada. Os prisioneiros, que nunca viram o mundo exterior, julgam que as sombras e o eco das vozes são reais.
O capitalismo, em seus primórdios, produzia em função das necessidades humanas. Não se investia em algo que o consumidor julgasse desnecessário. A superprodução inventou a publicidade de modo a inverter o processo, já não é o consumidor que busca o produto, é o produto que se impõe ao consumidor.
O avanço tecnológico e o design tornam a mercadoria descartável. Não basta ter um rádio. É preciso ter o novo rádio, de linhas arrojadas, formato menor, capaz de funcionar a pilha. Assim, graças à publicidade, o supérfluo torna-se necessário.
Nessa sua fase neoliberal, em pleno advento da pós-modernidade, o capitalismo introduz o mercado como paradigma supremo. Se no período medieval o paradigma foi teocêntrico, e a fé figurava como rainha do saber, se no período moderno o paradigma antropocêntrico fez a fé ceder lugar à razão, agora o mercado não se interessa pelo homem religioso ou racional, interessa-se pelo consumista. E, quanto menos razão, mais emoção, o que introduz o consumidor a contemplar, embevecido, um novo computador ou os veículos expostos no Salão do Automóvel. Assim, o capitalismo alcança o nosso inconsciente.
Agora, de costas à concretude da existência e indiferentes à sua historicidade, tomamos as sombras por relidades. O sentido da vida desloca-se da fé (coração) e dos ideais (razão) para se centrar nos objetos possuídos. Vive-se em função de bens finitos. Mesmo para o jovem morador da favela, o tênis de marca é mais importante do que a escolaridade e a formação profissional.
A pessoa é o que tem e ostenta, e não os valores e propósitos que assume. As aparências contam mais que o ser e, ainda que isso não seja verdade, há o socorro miraculoso do marketing para nos convencer de que faz bem à saúde o refrigerante descalcificador; imprime sedução a cerveja que alcooliza; concede status o carro luxuoso [que polui mais]. Vale a pena votar no político safado revestido de ética!
Se os bens finitos superam os infinitos, e o desejo converge para o absurdo, não é de estranhar que as frustrações sejam proporcionais às ambições. Todos invejam o alpinismo de seus ídolos incensados pela mídia, embora deles conheçamos apenas as sombras projetadas na tela da televisão e das revistas, pois estamos irremediavelmente de costas para a porta da rua, convencidos de que o personagem representado por aqueles que exibem fama, poder e riqueza é mais real que as pessoas deles."

Frei Betto, artigo 'A Caverna de Platão', publicado na revista Caros Amigos, em outubro de 2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

Alexandre.

Já naquela época eles estavam totalmente corretos em suas afirmações e tudo parece tão atual, impressionante mesmo.

Vale a pena meditar nesse sentido.

Abraço. Denise.