14 agosto 2007

Carregar a luta para a frente

Indico a Revista Cult desse mês, inteirinha. Está Excelente. Mas destaco os textos sobre Kierkegaard (principalmente os dois primeiros) e essa entrevista de Noam Chomsky.

"Dele, o jornal inglês The Guardian escreveu: "Noam Chomsky está ao lado de Marx, Shakespeare e a Bíblia como uma das dez mais citadas fontes nas ciências humanas - e é o único autor, entre eles, ainda vivo." O New York Times, com quem trava batalhas há décadas, chamou-o "o mais importante intelectual vivo." Mas Noam Avram Chomsky dificilmente é uma unanimidade. Nem quer ser: a polêmica parece parte essencial desse lingüista que abraçou o pensamento político e insistiu em teses tão provocativas como a defesa do regime sanguinário de Pol Pot na Camboja e a afirmativa de que os mortos do World Trade Center foram poucos em comparação com os provocados por governos americanos no Terceiro Mundo.
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CULT - Devido à sua crítica ao terrorismo, o senhor já foi acusado de, ao contrário, fazer a apologia do terrorismo. O senhor considera que há alguma chance de combater o discurso da ideologia conservadora, que evita o sentido da crítica por meio da confusão de seu conteúdo, como se não tivesse entendido o que ele significa?
Noam Chomsky - O único modo de lidar com o fanatismo ideológico é ignorá-lo e concentrar a atenção em pessoas que têm a mente suficientemente aberta para dar importância a evidências e argumentos. Há dois aspectos no que eu escrevi sobre o terrorismo desde 1981, quando o governo Reagan ocupou o poder declarando que uma "guerra ao terror" seria o foco da política externa dos Estados Unidos, uma "guerra" que foi redeclarada por George Bush em 11 de setembro de 2001. O primeiro é que eu uso a definição oficial de terrorismo dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Isso é considerado um escândalo, porque se usamos essas definições, significa diretamente que os Estados Unidos são um poderoso Estado terrorista, e o Reino Unido não fica muito atrás. A conclusão, claro, é inaceitável. Como a lógica é impecável, e a base factual não está em dúvida, a reação-padrão dos que fazem a apologia do terror do Ocidente é de pura irracionalidade. Uma das reações é a que você descreveu: fingir que a condenação consistente de todos os tipos de terror é uma apologia para o terror deles contra nós, o único tipo que pode ser discutido dentro do sistema doutrinário. O segundo aspecto do que escrevo sobre o assunto é que, ao discutir o terror deles, eu acompanho de perto as análises dos principais especialistas em terrorismo islâmico do mundo acadêmico, da inteligência dos Estados Unidos e do jornalismo, como Fawaz Gerges, Michael Scheuer e Jason Burke. Isso também é considerado um escândalo, porque eles fazem análises sérias, e é muito mais conveniente fazer poses heróicas diante das câmeras e falar de "fascismo islâmico", "guerra de civilizações" etc. Quanto ao discurso ideológico conservador, vale a pena ter em mente que algumas das mais extremas e irracionais defesas da agenda política nesses pontos é produzida por pessoas que se definem como liberais e social-democratas. Independente de sua origem, há alguma maneira de confrontar o discurso ideológico? Sim, há uma maneira muito simples: tentar dizer a verdade. Não arranca aplausos da elite intelectual, mas é assim que ela reage normalmente às revelações sobre a natureza e o exercício do poder. O que importa é o público em geral, que é capaz de se libertar das doutrinas e buscar compreensão.
CULT - Seus textos e entrevistas, de um modo ou de outro, defendem a necessidade da reflexão, da análise, do pensamento lúcido capaz de perceber os motivos e o que o senhor - numa entrevista a John Junkerman em 2002 - chamou "componentes de legitimidade" das ações terroristas, ou seja, o que leva à sua existência e possibilidade de que se repitam. Seria, essa ausência de reflexão, algo semelhante ao que Hannah Arendt chamou "vazio do pensamento" e que levava à banalidade do mal? Seria essa, para o senhor, uma idéia atual?
N. C. - Acredito que existe uma similaridade, mas as idéias são simples e diretas. Não vejo necessidade de ocultá-las em uma retórica arrogante e pretensiosa.

CULT - O senhor considera que a humanidade vive atualmente um otimismo inconseqüente? O senhor acredita em algum argumento básico, que pode fazer com que os desatentos reflitam sobre o estado atual da política internacional e das questões relativas à natureza como o aquecimento global, sem parecer apologia do pessimismo? É possível refletir hoje sem usar esse termo?
N. C. - Não apenas acho que é possível, sei que é possível, por experiência e pela história. Todos nós sabemos. Confrontar o poder, a repressão e a injustiça nunca foi fácil, mas muitas tarefas foram realizadas e o sucesso não foi pequeno. As lutas de muitos anos nos deixaram um legado de liberdade que é raro em padrões históricos comparativos. Podemos optar por usar esse legado para carregar a luta para a frente ou podemos decidir abandonar a esperança, acreditando que o pior vai acontecer. Essa escolha é comum no decorrer da história. Felizmente, muitas pessoas não abandonaram a esperança, e não há razão para fazê-lo hoje.

CULT - Considerando que a vida e a morte dos "sem-poder" é decidida soberanamente a cada dia na política interna e externa das nações, o senhor considera que podemos escapar da biopolítica que a política se tornou?
N. C. - Sim. Novamente, podemos escolher o caminho fácil do desespero, mas é uma escolha, não uma necessidade. Aqueles que fizerem essa escolha não terão a gratidão das pessoas que sofrem hoje ou das futuras gerações.

CULT - O senhor considera que os intelectuais têm um papel específico diante da atual ordem
internacional e das questões nacionais e regionais que envolvem o poder?
N. C. - As pessoas são chamadas de "intelectuais" se possuem um determinado grau de privilégio e decidem usar sua oportunidade na arena pública. É fato que o privilégio traz oportunidade, e é um truísmo moral que a oportunidade traga responsabilidade. Portanto, aqueles que são chamados de "intelectuais" têm responsabilidades claras. Como são eles que escrevem a história, o papel histórico dos intelectuais parece muito atraente: corajosos, honrados, defensores da verdade e da justiça etc. A história real é um pouco diferente. O fundador da moderna teoria das relações internacionais, Hans Morgenthau, lamentou o que chamou de nossa "subserviência conformista aos que estão no poder", referindo-se às classes intelectuais. A descrição dele tem um mérito considerável - agora e no passado. Há exceções, é claro, e muitas vezes sofreram por sua integridade - o quanto, depende da natureza da sociedade. Mas a responsabilidade permanece.
CULT - Qual seria o fundamento central, na sua opinião, da conexão entre capitalismo e o totalitarismo mascarado de democracia em que vivemos? O senhor considera que a democracia pode ser liberta pela economia?
N.C. - Os sistemas nos quais vivemos têm muitas falhas, mas estão longe de ser totalitários, embora tenham elementos totalitários. Uma corporação moderna, por exemplo, é tão próxima do ideal totalitário quanto qualquer outra instituição construída pelo homem.
(...)
De maneira mais geral, as decisões sobre economia, vida política e social e outras questões são fortemente influenciadas, de diversas maneiras, pelo poder econômico concentrado. Mas forças populares empenhadas e comprometidas têm muitas oportunidades de modificar políticas e de mudar ou mesmo de desmantelar estruturas institucionais que passarem a considerar ilegítimas. E os sistemas de poder estão conscientes disso. Essa é uma das razões da intensa propaganda tentar manter o público passivo e marginalizado. Não há compulsão para sucumbir a essas pressões. Não há como a democracia ser reconstruída e estendida pela economia, mas não há limites discerníveis quanto ao que o empenho popular pode alcançar. O que está faltando é vontade, não oportunidade.
(...)
CULT - Há alguma chance de escaparmos do projeto do consumismo global desde que a política foi substituida pela economia e assim perdemos a noção de nossas relações?
N.C. - Repetindo, podem optar por sucumbir ao consumismo e a outros tipos de propaganda ou podemos seguir caminhos próprios e independentes. É mais fácil confrontar o consumismo que as câmeras de tortura, fato às vezes esquecido."

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