05 julho 2008

Máscaras

"Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
e que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário.
Como um cão tolerado pela gerência por ser inofensivo.
E vou escrever esta história para provar que sou sublime."
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

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