12 julho 2008

Mentiras aceitas

Ídolos para quem precisa
Marcio Renato dos Santos - Gazeta do Povo, em 12/07/2008
Ao invés de um Alexandre (o Grande), um sorridente catapultado via reality show. No lugar de um Pelé ou de um Garrincha, um talvez artilheiro ou outro pseudocraque. Quase ninguém mais ouve, e admira, uma cantora como Aracy de Almeida: as audiências contemporâneas preferem quem segure o tchan, amarre o tchan – tchan, tchan, tchan, tchan. Hoje, vivemos a época das celebridades. Instantâneas e descartáveis (sobretudo, substituíveis).
O professor de Crítica da Mídia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS) Francisco Rüdiger explica que, diferentemente de períodos passados, em que a humanidade valorizava quem tinha méritos indiscutíveis – como heróis, guerreiros, empreendendores e santos –, atualmente celebra-se o homem banal e ordinário. "A essência da celebridade é a banalidade do homem comum", define.
Rüdiger ainda afirma que, na contemporaneidade, tudo é nivelado por uma média. "Pela mediocridade". (...) O professor de Sociologia da Comunicação de Massa da Universidade de São Paulo (USP) Álvaro de Aquino e Silva Gullo esclarece que a chamada celebridade não passa de construção dos meios de comunicação de massa. "A mídia transforma qualquer sujeito em celebridade. De repente, uma atriz se torna uma semideusa. Tudo o que ela fala e faz passa, então, a ser modelo de comportamento", analisa.
Modelos?
Gisele Bündchen usa uma sandália e milhões de brasileiros fazem o mesmo. Isso é ou seria "normal"? O coordenador do departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Mário Eduardo Pereira garante que os fãs, muitas vezes, se espelham em uma celebridade na ilusão de que esses sujeitos famosos são completos ou perfeitos. "O ser humano cultiva a esperança de que pode haver perfeição e, por isso, idealiza uma celebridade. Mas não existe ser perfeito. Quanto mais desamparada a pessoa, maior a tendência em idealizar alguém", comenta.
(...)

Restrições
(...) O professor Francisco Rüdiger, da PUCRS, ao analisar Amy e Britney, entre outras celebridades, elabora uma possível definição para o "fenômeno": "Celebridade é um aspecto da fortuna trágica do homem comum no mundo contemporâneo". O doutor Álvaro de Aquino e Silva Gullo, da USP, ao perceber que pessoas se espelham em Britney e Amy, estabelece uma sentença, no caso, para os admiradores de celebridades: "O fã é o idiota receptor que aceita a mentira (celebridade). O fã é a imbecilidade. Apenas a falta de perspectivas pode colocar a celebridade como modelo".

A Tirania do Rosto Público
Luciana Romagnolli - Gazeta do Povo, em 12/07/2008
É pouco arriscado escrever que o leitor nunca viu Amy Winehouse pessoalmente, mas sabe quem é a moça. Mais que isso, conhece detalhes de seus escândalos autodestrutivos, envolvendo o marido preso, álcool em excesso, drogas pesadas. (...)
O que torna essa garota objeto de interesse de muitos para que tanto se saiba sobre ela? Como se sustenta esse culto à celebridade? E por que o destino de inúmeras delas é a auto-destruição? Algumas idéias para responder a essas perguntas afloram do livro Celebridade, escrito por Chris Rojek, professor de Sociologia e Cultura na Nottingham Trent University, na Inglaterra. Lançado originalmente em 2000, só agora a obra chega ao país, pela Rocco.

Vazio existencial
As celebridades são um fenômeno da “era do homem comum”, acredita o autor. Teriam encontrado seu espaço no vazio existencial, na ausência de modelos superiores que nos guiam desde que reis e deuses deixaram de ser crenças inabaláveis.
“A crescente importância do rosto público no dia-a-dia é uma conseqüência da ascensão da sociedade pública, uma sociedade que cultiva o estilo pessoal como um antídoto para a igualdade democrática formal”, escreve o inglês.
Viver em democracia. O declínio da religião organizada. Falta um ponto nessa tríade desenhada por Rojik. A transformação do cotidiano em mercadoria completa o ambiente em que teria germinado o fenômeno das celebridades. No caso, um “mercado de sentimentos”, a remediar os desejos frustrados do público, despistá-los num “culto à distração”.

Encenação
O encantamento que a celebridade exerce sobre o público só acontece, na opinião do autor, porque cada aparição sua é encenada. Cercada de cuidados por intermediários culturais: agentes, publicitários, marqueteiros, fotógrafos, personal-trainers, figurinistas, maquiadores, consultores e assistentes pessoais, responsáveis por moldar seus corpos e personalidades. Com a participação imprescindível da mídia, a distância dos fãs e a falta de reciprocidade na relação não deixam que o mistério se desfaça.
“O status de celebridade sempre implica uma divisão entre um eu privado e um eu público”, sentencia o livro. Por essa partilha dual, e as conseqüências que lega à ela, Rojik recebeu críticas de que estaria ultrapassado diante da propagada idéia pós-moderna de identidade fragmentada. Mas a argumentação do professor não deixa de ser interessante.
Ele relembra uma ironia de Cary Grant (1904 – 1986). O ator que dividia as atenções em Hollywood com estrelas como Audrey Hepburn e Grace Kelly, dizia que tanto ele quanto os seus fãs adorariam ser Cary Grant.
Na frase de efeito, a consciência de que a figura pública que encarnava era completamente distinta do seu eu “privado”, outro. Essa fratura, crê Rojik, seria capaz de culminar na perda da identidade, engolida pelo eu “público”. Peter Sellers, cita também, costumava reclamar que, ao concluir seu papel em um filme, ele próprio “desaparecia”.
Intrigante paradoxo. Transcender o eu “privado”, anônimo, seria um dos principais motivos que impulsionaria alguém à batalhar pelo status. Mas, quando esse desejo se realiza, o risco é duplo: sentir-se engolido por um rosto público que é seu, mas estranho. Ou pior. Sentir-se aniquilado ao perceber que, aos olhos alheios, o seu eu “público” é o único autêntico.
“O eu verídico pode fazer tentativas cada vez mais desesperadas de vencer a tirania do rosto público”, escreve Rojik. E aqui Amy Winehouse, o descontrole de Britney Spears e a overdose de calmantes que matou Marilyn Monroe podem vir à mente. “O rosto público recorre a tentativas cada vez mais dramáticas de alertar o público para o horror, a vergonha e a abusiva impotência do eu verídico”, completa.
O público assiste ao espetáculo. Com mais ou menos compaixão.

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